Ficção: Ensaios de solidão: Esperando Clarice

prates bonfim

Por Mariana Kaoos

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Fim de semana. Sábado cinza. Naquele dia não chovia. Contudo, nuvens esparsas, carregadas de cor, de água, tomavam o céu por completo na cidade. Em sua casa, de poucas janelas, entrava um breu. Era necessário que ela ligasse a luz, aquela luz amarela e gasta que tanto odiava, para poder se locomover. Há pouco tinha tomado banho e lavado seus cabelos com shampoo de camomila. Eles eram claros, lisos e longos, os seus cabelos. Era o que as pessoas mais elogiavam nela, mas isso pouco importava. Geralmente, quando saia por aí, sempre se esquecia de penteá-los, assim como de tirar o esmalte descascado das unhas ou até mesmo colocar brincos nas orelhas. Ela era meio alheia a todas essas obrigações femininas.

Melancólica como o dia que se descortinava de maneira vagarosa, ela trajava um moletom azul turquesa e meias nos pés. Estava sem sutiã porque odiava sutiãs. Odiava sutiãs, mas amava meias. As escolhidas para o momento eram curtas e tinha um desenho de dragão na sola. Decidira também passar uma lavanda barata que tinha comprado no mercado. Era o máximo que podia fazer de esforço vaidoso naquele dia. Sentada na varanda, com um cigarro aceso na mão direita e o cinzeiro na esquerda, ela esperava por Clarice.

Já tinham se passado mais de quarenta minutos da hora marcada e nada de Clarice aparecer. O que era estranho, pois Clarice não tinha o hábito de se atrasar para nenhum dos seus compromissos. Era nisso, era nesse pensamento que ela se apegava para não deixar a angustia tomar conta de si. Na verdade, não só angústia. Naqueles últimos tempos uma enxurrada de sensações vinha percorrendo todo o seu corpo, mente e coração. Ela não conseguia categorizar direito. Aliás, ela sequer conseguia distinguir todos os sentimentos. Era difícil para ela administra-los. Sabia que havia medo, ansiedade, angustia e desejo. Sabia também que, em determinados dias, a posse e o ciúme tomavam conta de si. Tudo se misturava a um querer tão dilacerante que chega se tornava triste, pesado. É, era isso. Triste e pesado.

Tudo começara no primeiro dia de verão. Dizem que verão é a estação mais quente do ano e, por diversos motivos que agora não interessam, somos praticamente obrigados a sermos felizes. Os programas de tevê nos dizem isso, as músicas que passam nas rádios nos estimulam, as possibilidades de viagens, as convocatórias de amigos para sair, para beber, para namorar. Argh! Tudo no verão nos encaminha para a felicidade e como isso é sufocante. Como isso é sufocante por ser totalitário. Desde aquele primeiro dia de verão, desde aquela terça feira à noite, em que o céu estava estrelado e na praça da cidade uma banda de reggae se apresentava, que esse misto, esse caos de sentimentos tomara conta de si. Passados mais de um mês após essa invasão, ela ainda não compreendia, não aceitava, tampouco desconfiara dos porquês do seu coração viver acelerado, em descompasso com o real. Que desconhecido ainda guardava dentro de si? Será que havia mais sentimentos inexplorados? Inominados?

Não sabia ao certo. Não sabia ao certo e, assim que deu sua última tragada no cigarro, deixou os pensamentos para lá. Levantou-se e foi em direção à cozinha. Mesmo com a falta de Clarice, ela decidira que começaria a preparar a massa do bolo. Era um bolo tropical. Na receita havia abacaxi e pedaços de coco também. Nunca tinha feito esse bolo na vida. Na verdade, nunca tinha feito bolo algum, a não ser aqueles de caixinha Dona Benta. Quem tivera a ideia de cozinhar naquele sábado cinzento fora Clarice.

Clarice adorava mexer com qualquer coisa relacionada à comida. Cortar temperos era uma de suas terapias preferidas. Quando estava triste, quando estava alegre, quando estava estressada ou em estado de êxtase total. Pegava a tábua, uma faca amolada, alho, cebola, tomate, pimentão e cortava todos os temperos bem miudinhos, num formato quadrado. Aí depois misturava-os na carne ou no que mais estivesse em sua mente. Molhos também eram de sua especialidade. Bolos não. Clarice nunca fora muito chegada a doce. Desde pequenininha. O que era até engraçado, pois sua mãe e sua vó sempre foram viciadas em açúcar. Na sua concepção, era uma dádiva que ela não tivesse herdado esse costume. Enfim, de qualquer maneira, naquela semana Clarice estava com vontade de comer um bolo e por isso fizera o convite.

Contudo, primeiro foram quarenta minutos de atraso. Depois uma hora e vinte. Onde será que Clarice se metera? E por que teria ela combinado de fazer um bolo se não era mesmo o seu desejo? Ou era esse mesmo o seu desejo e, algum imprevisto aconteceu? Quando Clarice finalmente aparecesse, será que iria vir sorridente como sempre? E seu cheiro, ainda seria aquele insuportável e inebriante cheiro misterioso de coisa indistinguível? E ela, como ela iria reagir quando vislumbrasse Clarice na porta? Fingir que não percebeu o tempo de espera? Controlar a disritmia em seu coração? Ou permanecer em silêncio soturno, como sempre optava por permanecer?

Abriu o livro de receitas na página vinte e leu a primeira instrução que nele aparecia: “Bata a manteiga no açúcar até ficar um creme. Coloque as gemas, bata mais. Misture a farinha, o leite e, por último, as claras em neve e o fermento em pó”. Pegou uma grande tigela, uma colher de pau e assim o fez, exatamente como a receita mandava. Enquanto mexia de maneira uniforme, sempre no sentido anti horário, sua mente exibia cenas da primeira vez que tinha visto Clarice. Fora tudo tão estranho. Não propriamente como se conheceram, afinal foi uma apresentação como outra qualquer. Estavam entre amigos em comum e começaram a beber e a tocar violão. Conversaram algumas coisas, se distraíram juntas com outras, mas nada demais. O que era estranho, o que era realmente estranho naquilo tudo é como ela e Clarice começaram a se ver com mais frequência, a conviver durante o verão.

Na verdade elas não tinham nada a ver uma com a outra. Clarice existia pelas palavras. Ela existia pelo silêncio. E, ainda que em fragmentos encantados de instantes, as palavras unidas ao silêncio gerassem uma existência iluminada de paixão, essa existência era efêmera, fulgaz, frívola. Depois dela aparecia sempre a inquietação. Se um dia alguém pensasse em definir a ambas através de uma só música, certamente que seria Mal Secreto, na voz de Gal Costa. Sendo ela caracterizada pela primeira parte da canção e Clarice pelo segundo trecho.

Ela estava batendo a massa do bolo de maneira mecânica e tão perdida em seus pensamentos que quase não ouvira o celular tocar. Foi bem de repente que despertou e correu até o quarto para atender a chamada. Pensara ser Clarice, na verdade não era. Uma expressão azeda pairou em sua face. Olhou para o relógio e constatou que mais trinta minutos haviam se passado. Não era possível, realmente não era possível que Clarice fosse fazer aquilo com ela. A raiva brotara em seu peito. Pensamentos ruins em sua mente. Talvez Clarice não estivesse mesmo nem aí para nada, muito menos para ela. É, Clarice tinha sua vida, seus interesses, seus trabalhos, sua solitude, seus outros amores que, agora ela tinha certeza, eram mais importantes. Pegou mais um cigarro, foi até a varanda, acendeu com a última tala da caixa de fósforos.

E ela, o que tinha ela afinal? Além das coisas, dos encontros casuais, o que lhe sobrava de seu? E por que essa entrega contida? Trauma de algumas lembranças do passado? Medo da dor? Do desamor? Do desafeto? Ou medo justamente do contrário? Medo do apego e da paixão e da necessidade de pertencimento? Era sempre assim, ela dizia não querer se envolver com a sedução mundana, mas era tudo mais forte do que ela. Aí depois, quando se dava conta do tanto que estava submersa nas situações, prontamente colocava uma muralha ao seu redor. A muralha era impenetrável. Os que estavam de fora não entendiam. Ela que estava dentro sofria calada.

Voltou com passos lentos até a cozinha, olhou para a massa amarelada do bolo tropical. Uma lágrima que saiu de seus olhos caiu na mistura, porém ela não viu. Estava procurando uma assadeira. Assim que a achou, ligou o forno e deixou o bolo lá por quase uma hora, até que pudesse ficar no ponto. Sua cabeça estava a mil e, embora tentasse se auto convencer de que já não queria mais contato com Clarice, em seu coração ainda havia a falsa esperança de que ela aparecesse. Bem no seu íntimo torcia baixinho para que Clarice aparecesse. Ela precisava aparecer e lhe resgatar de todas aquelas incertezas e receios de existência. Não, não era isso que ela queria. Na verdade era, mas ela tentava resistir com todas as forças. Porque ela se achava forte e não precisava de mais ninguém, muito menos de Clarice. Clarice inconstante. Clarice intensa. Clarice carregada de palavras que a seduzia e depois a assustava, a fazia recuar.

O despertador apitou. Já era hora de tirar o bolo do forno. Ela pegou uma luva e um pano de prato, tirou a assadeira com cuidado e colocou em um descansador em cima da pia. Olhou pela última vez para a porta fechada que não se abria com a vinda de Clarice, pegou uma faca e cortou uma fatia do bolo tropical. Ele estava solado.



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