Tome Nota: A Bahia do nosso Senhor do Bonfim

´tex encomendas

Por Mariana Kaoos

Meu pai Oxalá é o rei, venha me valer:

Cortejo  da  Lavagem  do  Bonfim 2010 Na Foto - Multidão reverancia Senhor do Bonfim Foto - Claudionor  Junior  Ag   A Tarde 14.01.2010

15 de janeiro de 2015. Travessa Baependi. Edifício Baependiville. Ondina. Salvador. Bahia. Sete horas da manhã. Ventilador ligado num quarto escuro. Naquele dia já acordei bocejando e querendo dormir mais. Esfreguei minhas mãos no rosto, comprimi meus olhos e, num intuito de enganar a mim mesma, tive o meu primeiro pensamento do dia: “To com dor de barriga, melhor ficar em casa dormindo!”. Era mentira. Eu não estava com dor de barriga coisa nenhuma. Eu estava era com preguiça de levantar, porque realmente, me diga, quem é que em pleno verão, acorda às sete horas da manhã?

Aí quando me enrosquei novamente embaixo da coberta, um sabiá parou na minha janela e começou a cantar insistentemente. Por alguns minutos tentei ignora-lo, até que fui vencida pela ousadia do canto e levantei reclamando da vida para tomar um banho. Banho, diga-se de passagem, muito mal tomado. Voltei para o quarto e, quando estava vestindo uma roupa branca, recebi um telefonema com o seguinte recado: “Desce que estou na porta!”. Enfiei um misto de queijo e presunto goela abaixo e desci apressada. Era uma amiga muito querida que tinha ido me pegar para, naquele dia, naquela manhã, irmos à lavagem das escadarias da Igreja do Bonfim.

d33bc489-e102-4ff5-b59e-5d9123d02ff5

Contextualizando um pouco, a Lavagem do Bonfim é a seguinte: É uma festa de largo, gratuita e que atrai multidões todos os anos. O cortejo ocorre na segunda quinta-feira, após o dia de Reis (06 de janeiro) e os festejos religiosos (no caso, a novena) se encerram no domingo após a procissão. Logo pela manhã, há uma missa na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia (bem pertinho do Elevador Lacerda) que conta com autoridades políticas locais. Na sequencia, dá-se inicio ao cortejo. Baianas carregando água de cheiro, jarros de flores e vassouras abrem alas. Fiéis, devotos, curiosos e afins acompanham-nas num percurso que termina oito quilômetros à frente, mais precisamente no adro do Bonfim. Ao chegar, as baianas lavam as escadarias da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim com água perfumada e oferecem a benção e jorram água sobre a cabeça das pessoas que buscam nesse ato a purificação do corpo e da alma.

Isso é o contexto sagrado da coisa e é muito lindo e vale a pena, pelo menos uma vez na vida, acompanhar ele de perto. Contudo, como na Bahia sempre há um lado deliciosamente profano, segue aqui um pouco da sua descrição: após a saída das baianas, é a vez da baderna e do desbunde em geral. Vale ressaltar que é tudo sem corda! Bloquinhos, bandinhas de sopro, carroças com som, carros que improvisam um sistema de trio elétrico, grupos de percussão, fanfarras e tudo o mais que você possa imaginar vão na sequência, até a colina sagrada. A farra é das boas e dá para ouvir de tudo um pouco: samba (aqui vale mandar um alô para a galera do Bloco De Hoje a Oito), funk, pagode baiano, axé, sertanejo universitário, musica popular brasileira, maracatu, embolada e por aí vai.

Quem está presente em todo o trajeto também são os camelôs. Barraca de churrasquinho de gato, vendedoras de acarajé, pf de caruru com vatapá e moqueca, isopor com cerveja gelada (uma é três e duas é cinco), água, coquetel de frutas, vendedores ambulantes de óculos de sol, protetor solar, chapéus, camisas do Senhor do Bonfim, carrinhos de mão contendo as mais variadas frutas (umbu, maçã, melancia, etc) e todo, mas absolutamente todo tipo de comércio que você possa imaginar. Ah, diferentemente de outras festas de largo, o trajeto do cortejo da Lavagem do Bonfim também é muito bem equipado de sanitários químicos. É, tudo bem, admito que as filas são quilométricas e, muitas vezes, a opção imediata para o alívio é ir atrás de algum carro ou árvore, mas isso não ocorre por falta de assistência higiênica, e sim por escolha particular de cada um.

Então quando a minha amiga foi me pegar em Ondina, eu na minha santa inocência achei que chegaríamos rápido, a ponto de poder pegar a saída das baianas. Ledo engano! Estava tudo engarrafado. Na Avenida Sete era impossível estacionar.  Tentamos o Santo Antônio Além do Carmo, mas carro já nem subia mais. Voltamos e descemos ate a Avenida Contorno que também estava impraticável. Já estávamos prestes a retornar e assistir tudo pela televisão quando uma última opção apareceu: o Dois de Julho. E deu certo. Paramos na Rua Tuiuti e fomos praticamente obrigadas a pagar um valor de dez reais a um daqueles meninos que ficam “de olho” nos carros da rua.

Passado o estresse, finalmente chegamos ao Elevador Lacerda. O cortejo já tinha partido há algum tempo e bandinhas começavam a traçar caminho. Decidimos acompanhar o microtrio do MAM (Museu de Arte Moderna) e, vou te contar, foi a melhor escolha dos últimos tempos. Existe uma falsa crença de que na Bahia, especificamente em Salvador, tudo é junto e misturado. Não é bem assim. A cidade e a cultura produzida dentro dela segregam e criam nichos identitários de maneira escancarada. No Mam há um projeto de jazz ao por do sol todos os sábados. O microtrio, que se apresenta na Lavagem do Bonfim e também no carnaval, é composto por alguns de seus músicos e sempre abarca um público seleto e fiel.

Assim sendo, nesse dia, quem acompanhava o microtrio eram os ditos e considerados “alternativos”. Jovens tatuados, de piercing, dreadlocks, cabelos blackpower, fumando tabaco orgânico e passando muito protetor solar. Homens de meia idade, com bigodes já brancos, sempre sorridentes e com coreográficas certeiras nos pés. Gringas, com botinhas de fazer trilha e geralmente acompanhadas por algum negro, estupidamente lindo. Artistas, poetas, músicos, livres pensadores que, diferentemente do restante do ano, naquele instante, celebravam e confraternizavam entre si, de maneira alegre e sem violência. Olhando por um lado, é terrível observar que naquele espaço não cabia qualquer um e que, portanto, estar lá pressupunha fazer parte de uma “elite cultural” diferenciada em Salvador. Qual o quê! Olhando por outro lado, e é por esse que digo que fiz a melhor escolha dos últimos tempos, o microtrio do Mam oferece um repertório vasto, extenso e um pouco difícil de encontrar em festas populares.

Vasto e extenso sim! Naquele dia fui bebendo cerveja e dançando com os coroas algumas canções de Jorge Ben, Tim Maia, Gonzaguinha, Monsueto, Pepeu Gomes e os Mutantes. Foi regalo total. Delicia cremosa. Entorpecente poético para o espirito. Na Cidade Baixa, principalmente no comércio, há muitos prédios antigos, enormes e lindíssimos. Algumas construções que, creio eu, já tem mais de um século. É arborizado e, de certa maneira, colorido. O trajeto da Lavagem do Bonfim proporciona também um orgasmo visual.

Outra curiosidade acerca da Lavagem  volta-se novamente para o sincretismo religioso. Para os fiéis em geral, é uma festa não só da igreja católica, mas também do candomblé. Dentro dele, o Senhor do Bonfim corresponde a Oxalá, orixá supremo ligado à criação do mundo. Sua cor é branca e seu dia, sexta-feira. Oxalá é cultuado como o maior e mais respeitado orixá. Ele simboliza a paz e traz em si a calmaria, serenidade e sabedoria. É comum ir à Lavagem e observar esse mistura de doutrinas e esses deuses, Oxalá e Senhor do Bonfim, como híbridos e, no fim, tornando-se um só.

No ano passado fui para a festa no intuito de saudar Oxalá, um dos regentes do meu orí. Fui também com o propósito da diversão, dos encontros, das experiências e da consciência de ser povo e estar no mesmo lugar que ele. O teor etílico que subiu à minha cabeça me impediu de chegar até a colina sagrada. Entretanto, os passos vagarosos que dei durante o trajeto que fiz, foram de extrema alegria e agradecimento. Certamente que poder estar presente numa festa popular como essa vale todo o esforço possível, desde o de acordar sete horas da manhã, até mesmo o de ficar mais de uma hora no engarrafamento e pagar dez reais para estacionar o carro.

És o eterno farol, és o guia, és, senhor, sentinela avançada, és a guarda imortal da Bahia:

Para os crédulos de plantão como eu, as previsões para esse ano já são muitas. Segredado por Vera Pythia, quem é ligado ao misticismo e hibridismo doutrinário, 2016 é considerado o ano de Oxalá. E isso que dizer que será um ano mais lento. Ele passará devagar, porém terá constância e estabilidade, como os passos de Oxalá. Talvez seja o momento de repensarmos nossas atitudes e começarmos a praticar o amor a nós mesmo e ao outro. É esse amor o único caminho que nos conecta a Oxalá.

As cores para o ano serão o branco, azul claro, amarelo, dourado e laranja. Já as pedras serão o quartzo branco, água marinha, ouro e rúbi. Já na questão da numerologia, 2016 será o ano do 9. Esse numero é interpretado como o doador universal. Sua satisfação é ser prestativo e ajudar ao próximo. Ou seja, novamente os astros indicam que devemos nos doar e nos centrar em práticas como serenidade, tolerância, entrega e perdão.

Nessa quinta-feira agora, dia 14 de janeiro, haverá o cortejo da Lavagem do Bonfim, em Salvador. E se sempre foi de extrema importância pedir a benção ao santo, esse ano a importância é em dose dupla por ser o ano de Oxalá. Ao que estiverem em Salvador, não deixem de ir. Aos que puderem viajar, não percam esse dia. Aos que ficam, assim como eu, que o nosso Senhor do Bonfim e que Oxalá possam estar nos nossos pensamentos e que possamos, além de agradecer pelo ano que se passou, mentalizar pensamentos de paz, equilíbrio e elevação espiritual para 2016.



Artigos, Bahia, Vitória da Conquista

Comentário(s)