Por Luiz Cláudio Sena do Blog do Fábio Sena
Passei a noite em claro, diário. Não posso reclamar das acomodações aqui da Papuda, nem posso reclamar do tratamento distinto que venho recebendo, já que, tecnicamente, não sou o que se pode chamar de um “criminoso”. Pela manhã, quando – junto a meus companheiros de cela – fomos tomar um banho de sol no pátio, avistei José Dirceu e fiquei consternado. Por mais que, do ponto de vista ideológico, estejamos em campos opostos, condoeu-me seu semblante de evidente melancolia. Cabisbaixo, pálpebras inchadas criando uma moldura de precoce envelhecimento e um olhar perdido no infinito. À mão, um livro cujo autor desconheço mas cujo título tomava toda a capa: Eu e Outras Poesias.
Aproximei-me um tanto quanto constrangido. Não sabia como ele iria me receber, dada a minha filiação partidária. Cumprimentei-o com um discreto “e aí, cumpadi!”, ao que ele, com cara de espanto, ao ver-me, disse: “Jesus Prisco!”. Falamos um pouco sobre a ironia de nos encontrarmos ali, despidos nós dois de todo o aparato de sequazes, adeptos e discípulos que, no dia-a-dia fora da cela, nos circundavam.
Homem experimentado, e solidário comigo (que sou mais jovem e menos experiente), Dirceu me disse que seria tolice eu imaginar que teria ganhos políticos relevantes incentivando, por trás das grades, meus colegas a entrarem em greve novamente e tendo como causa não mais os direitos trabalhistas, mas a minha prisão. Repreendeu-me por eu ter dito que comemoraríamos nossa vitória junto a Wagner ao som de arrocha. Ele disse que Gil tem tanto reggae massa, tanto samba de alto nível, que ouvir arrocha tornar-se-ia mais daninho que todos os saques havidos na Cesta do Povo.
Tudo isso ele me dizia de modo muito pausado e baixinho. Entrecortando as falas, aqui e ali, com eructações em ré maior. Preferi não divergir dele no que diz respeito ao nosso gosto musical, e também porque meio que todos nós, os que estávamos ali tomando sol, estávamos meio que numa atmosfera de concórdia por conta da Páscoa. Dentro de mim havia uma vontade, não levada a cabo, de abraçar Dirceu e dizer-lhe o quanto o admiro, mas me contive. Preferi – para mudar de assunto, já que ele murmurou o nome da Eliana Calmon – perguntar o que lia.
Ele, ao invés, recitou-me o seguinte trecho: “Meu coração tem catedrais imensas,/Templos de priscas e longínquas datas…”. Empolgado com o fato de que eu ouvi com atenção (principalmente pelo “priscas”), ele mandou outro trechinho: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável/Enterro de tua última quimera./Somente a ingratidão – esta pantera –/Foi tua companheira inseparável!”. E terminou com: “Profundissimamente hipocondríaco,/Este ambiente me causa repugnância…”. E fez um ar de esgar repugnante. Ato falho, murmurei, baixinho, a palavra Joaquim e pude ver, em sua íris, uma chama arder o que me fez vez que devia sair rapidamente das imediações. Foi o que fiz, embalado, mentalmente, por Gil: “Vamos fugir deste lugar, baby!”.
*Esta, como se vê, é uma obra de ficção.