Ficção: Ensaios de verão: A vó, a menina e o mar

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Por Mariana Kaoos

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Vó Zelina é daquele tipo de vó bem tradicional. Usa óculos de grau na ponta do nariz, tem os cabelos grisalhos amarrados num coque e cozinha como ninguém. Não essas comidas da moda tipo sushi e hambúrguer (que segundo ela é tudo comida que não presta). Vó Zelina sabe é fazer um bife com batatinhas de lamber os beiços e também feijão com verdura e bolo de fubá. Quando chegam as férias e seus netos vão visita-la (ela tem oito, ao total) além de alegria e muito carinho, há também os mais variados quitutes.

Todo dia vó Zelina acorda às sete da manhã e começa a preparar o café. Tem pão de queijo, mingau de tapioca, cuscuz, ovo frito, requeijão, torrada quentinha saída na hora do forno, suco de maracujá, salada de frutas e, é claro, pão caseiro com goiabada. É só quando a mesa está toda posta que ela sossega. Quer dizer, sossega não. Se tem uma coisa que Vó Zelina é é letrada. Ela é daquelas velhinhas pirracentas, que adora meter susto nas pessoas, sabe como eh?

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Então, quando acaba tudo na cozinha ela começa a andar em meia ponta até o quarto dos netos, abre a porta de maneira sorrateira e vai puxando os dedos dos pés de cada um. Aí depois começa a sorrir e gritar ao mesmo tempo: “Acordem queridinhos da vovó. O galo já cantou, o sol já raiou e vocês nessa preguiça, nesse corpo mole. Vamos todo mundo tomar café e ir para praia já”.

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Pronto. O fuzueiro está instalado e Vó Zelina se esbalda nele. Dá a benção a cada um dos meninos e depois se senta a mesa com eles para ouvir suas histórias. É nessa hora que Zoé, o caseiro do sítio, aparece para tomar um café preto e bater um dedo de prosa com todo mundo.

Zoé é um senhor parrudo, de cabelos grisalhos e barba sempre por fazer. Tem os pés e as mãos calejadas do trabalho braçal e também uma enorme barriga de tanta cerveja que bebe. Ele e Vó Zelina se conhecem desde que ambos eram crianças. Chegaram até a namorar quando adolescentes, mas o romance não foi pra frente não. Vó Zelina conheceu Claudio Manoel, seu finado marido, por quem se apaixonou num piscar de olhos e ai já era Zoé. Contudo, ao contrário do que muitos pensam, o caseiro não ficou chateado e nem quis vingança. Muito pelo contrário. Estabeleceu com Vó Zelina e Claudio Manoel uma longa e bonita amizade que perdura até os dias atuais. Foi quando Claudio faleceu, há mais ou menos 20 anos atrás, que Zoé se ofereceu para ser caseiro e cuidar do sítio de Vó Zelina.

Uma de suas principais características é ser brincalhão. Quando Zoé chega na cozinha todas as manhãs, a criançada faz a festa. Uma delas em especial. A menina Vida Luisa. Ela é a mais nova dos oito netos, porém a mais esperta. Tem apenas nove anos de idade, mas carrega em si um olhar profundo e melancólico. Parece até que sabe de todas as coisas do mundo. Vida é calada, observadora e atenta para os pequenos detalhes do dia a dia. Adora subir em pé de manga, fazer castelinhos de areia e mexer nos cabelos da avó. Na verdade, ela é a única que possui essa regalia. Vó Zelina sempre fora extremamente vaidosa e não deixa ninguém pegar nos seus cabelos longos e sedosos. Só Vida que, tem dias, passa a tarde penteando fio por fio.

Vida não tem pai. Possui duas mães. Duas mães amorosas e protetoras que são muito felizes e concordam com tudo nessa vida. Tudo, menos os nomes dos filhos. Elas têm três ao total. O mais velho, de 13 anos, chama-se Francisco Torquato. Isso porque Marieta era fã de Chico Buarque e Ana apaixonada por Torquato Neto. O do meio era Antônio Blue, em homenagem a Tom Jobim e a cor azul e a mais nova Vida Luisa. Quando Ana engravidou de Vida, ela teve diversas complicações durante a gravidez. Os médicos disseram-lhe que seria extremamente arriscado ter a menina e aconselharam-na a abortar. No entanto, Ana não quis. Decidiu continuar com a gestação custe o que custasse.

E, aos trancos e barrancos, após sete meses, Ana deu a luz a uma pequena menininha que quase não chorava, mas já nascera com os olhos abertos. Marieta quis Vida porque acreditava que aquele bebê simbolizava justamente isso. Ana queria Luisa em homenagem a sua mãe que falecera quando ela ainda era pequena. Dessa maneira, a filha mais nova do casal passou a se chamar Vida Luisa.

E era ela, justamente ela a que mais se deliciava em passar as férias no sítio de Vó Zelina e conversar com Zoé. Às vezes ela pedia para ir com ele nas suas aventuras e ele, bobo que só, não tinha nem como negar. Montava a menina na mula mais mansa do sitio, conhecida como Catravinha, e, junto com ela, ia desbravar a Mata Atlântica. Claro que nada muito perigoso, pois temia pela segurança de Vidoca (era assim que Zoé gostava de chama-la). Quando ela ia junto para a mata, Zoé sempre fazia programas como pegar cacau, ou ir até o riacho tomar banho de bica ou desbravar umas matas que, dizia ele, eram virgens.

Teve uma vez que Vida aprontou uma com Zoé que ele ficou quase que três dias estarrecido, em choque com o susto que tinha tomado. Era dia claro e de muito calor. Vida tinha acordado cedo, antes de todo mundo, por conta do suor. Já querendo maquinar aventuras para o dia, levantou-se, tomou banho e colocou suas botinas. Depois foi até a cozinha e ajudou a vó com o café. Esperou os irmãos e primos acordarem, comeu com todos e continuou sentada, esperando que Zoé aparecesse. Como de costume, às oito e meia da manhã ele chegou sorrindo. Aí Vida deu um pulo em seu colo, encheu seu rosto de beijo, comprimiu os olhinhos como só ela sabia fazer e pediu-lhe que ele a levasse para a mata consigo.

Zoé deixou e, dessa maneira partiram cada qual em sua mula, para desbravar a mata escura. Nesse dia Vida estava traquina que só. Esperou Zoé se distrair e escondeu-se em cima de um pé de jaca. Pronto. Ele ficou doido. Procurava aqui e ali, gritava, ajoelhava pedindo clemência aos céus e nada de aparecer. Num gesto ímpeto, tirou sua cachaça da mochila, colocou no chão e a ofertou à Caipora em troca do aparecimento da menina. Vida assistia tudo lá de cima da árvore, com a mão na boca, para não gargalhar e fazer barulho. Depois de meia hora escondida e vendo que o caseiro já se encontrava em estado de choque, Vida resolveu aparecer. Mas não de qualquer maneira. Em determinado momento que Zoé estava de costas, a menina saltou da árvore e caiu sentada nos ombros dele. Ele ficou tão assustado que deu dois pulos para trás e caiu duro no chão.

Bom, o resultado disso é que os dois voltaram correndo para casa. Quando Vó Zelina soube da traquinagem, deu umas duas palmadas na bunda de Vida e a deixou de castigo. E não, o castigo não era ficar sem televisão, sem sobremesa ou algo do tipo. Até porque Vida não ligava para nada disso. O castigo de Vó Zelina foi ainda pior: a menina estava proibida de olhar o mar por cinco dias. E aí agora eu lhe digo: para alguém que é tão ligada ao mar, como Vida, ficar cinco dias sem olha-lo, sem perder-se em suas ondas é quase que uma tortura.

Quando chegou ao terceiro dia mesmo, a menina já estava toda cabisbaixa. Não comia direito e ficava se arrastando pelos cantos da casa. Ela que habitualmente pouco falava, já não emitia mais um som sequer. Só ficava parada, sentada no quintal com pernas de índio, e com um olhar turvo. Até que Vó Zelina ficou com tanta pena da neta que a tirou do castigo. Foi até onde Vida estava, pegou em sua mão e lhe disse: “vamos dar um passeio”. Quando Vida percebeu que estavam no caminho do mar, estampou um sorriso no rosto que, provavelmente, foi o sorriso mais bonito que alguém já emitiu no universo.

Na praia seus pés descalços pisaram na areia e se afundaram dentro dela. Como se fosse uma miragem, Vida olhou para frente e viu o mar. Abriu seus braços e foi correndo em sua direção. Finalmente estava em casa. Ah! Aquele momento foi tão emocionante que até Vó Zelina se comoveu. De seus olhos brotaram lágrimas salgadas e em seu coração um aperto de felicidade, contemplação e acalanto. Vó Zelina amava todos os seus netos de maneira igual, mas enxergava em Vida um quê de diferente. Ela compreendia que a menina tinha uma sensibilidade fora do comum e que, diferente das outras crianças, o seu gosto pelo mundo se dava através da sua relação com a natureza e consigo mesma. Num sobressalto Vó Zelina tirou sua roupa e, assim como a menina, foi correndo em direção ao mar.

Lá, dentro das águas salgadas, ambas se olharam e sorriram em comunhão. Era um dia de puro amor e alegria na Costa do Dendê.



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