Ficção: Ensaios sobre a seca – Pedro das chuvas

Por Mariana Kaoos

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Pedro era negro. Alto, de olhos esverdeados, despertava interesse em homens e mulheres alheias, que o viam passar de longe, e paixão nos amigos e amigas mais próximos. Alegre. Engraçado. Inteligente. Pedro tinha grande proximidade com as ideias de Aristóteles e Platão. Possuía o dom da oratória e sempre obtinha vantagem quando se aventurava a entrar em debates filosóficos. Era um homem sensível, de gostos refinados e coração mole.

Pedro morava no céu e era eterno. Nunca foi gente, tampouco anjo. Pedro já nasceu como santo. Ele foi gerado a partir da crença de diversos seres vivos numa religião mundana que chamavam de católica e, apesar de ditar as leis da ética e da moral e organizar os homens em torno de sua ideologia, nada tinha a ver com a religião dos céus. Sim, porque no céu não tinha moral, muito menos organização. No céu tinha sabedoria e amor. No céu tinha magia e racionalidade. No céu tinha respeito. No céu tinha o infinito ilimitado que era muito mais profundo e muito mais bonito do que supunha os homens mundanos.

As vidas no céu eram geradas a partir da fé das pessoas em torno delas. Se uma criança acreditasse muito em fadas, por exemplo, as fadas começavam a nascer por lá. Se acreditassem em anjos, eles prontamente apareciam. Era assim com tudo que habitava o céu, desde o divino até o horrendo. No céu também havia muitos monstros e dragões difíceis de controlar, que sempre saiam por lá querendo comer a tudo e a todos.  Quem passou a cuidar e domesticar as criaturinhas difíceis foi um outro rapaz chamado Jorge que, por sinal, também era santo e fora criado pela igreja católica, assim como Pedro.

Dessa maneira, num belo dia de sol, Pedro apareceu pelos céus. Já veio como homem. Ao contrário de alguns de seus outros irmãos como Jesus, que nasceu menino, virou homem e ainda filho da santíssima trindade, Pedro não passou pela infância e nem pode conhecer as estripulias e brincadeiras de uma criança feliz. Sentia-se injustiçado por conta disso. Nos céus, Pedro adorava ver o Pequeno Príncipe brincando com sua flor e tomando banho de bica, cheio de alegria e brilho nos olhos. Queria poder ter em si aquela mesma sensação, mas lhe era impossível, porque já nascera homem e os homens sentem de maneira diferente das crianças.

Foi então que, por pura pirraça, resolveu dar um golpe na imaginação dos católicos mundanos. Como era santo, obtinha a vantagem de realizar alguns truques de magia, ou milagres, como os homens gostavam de chamar. Indo contra a perspectiva e certeza de todos, Pedro mudou sua cor e condição física. De branco se pintou de negro. De velho com longa barba, se fez novo, com olhos verdes. Continuou sábio como era esperado, mas adicionou um toque de sensualidade em si. Quem poderia acreditar que São Pedro, um dos maiores discípulos de Jesus, o santo que mandava as chuvas para a Terra, na verdade era um jovem, cheio de vida e esperteza?!

E mais. Pedro adorava tomar umas. Todas as quintas à noite, era certo de encontra-lo no Bar Celeste, sentado na mesa cinco, tomando o seu elixir. Elixir nos céus, nada mais era que uma bebida amarelada, feita com cevada divina, e tomada sempre gelada. Quando só, Pedro bebia em torno de cinco ou seis elixir e escrevia suas inquietações em um bolo de guardanapos. Se acompanhado, ai ele varava a madrugada dando risadas, batucando um samba novo, criando discursos proféticos para o dia do juízo final.

Ele tinha amigos de longas datas e irmãos que não eram só irmãos, mas grandes companheiros. Estava sempre ao lado do poeta Vinicius, do mano Antônio e de Sócrates. Esse, em especial, tinha a particularidade de não ser inteiramente vivo. Sócrates era apenas um filete de luz que às vezes brilhava mais, outras menos. Isso acontecia porque enquanto um grupo de humanos tinha convicção na sua existência, outros acreditavam que ele era pura invenção de Platão e, dessa maneira, Sócrates nasceu na dualidade, no meio termo entre o ser e o não ser.

Mas como a história da vez é sobre Pedro, continuemos a falar sobre ele que também adorava deitar-se sobre alguma nuvem de algodão e ficar apenas contemplando a divindade da existência. Oh, tantas dúvidas, incertezas, quantos questionamentos sobre si e sobre o mundo rondavam a cabeça de Pedro. Como sua principal função era mandar chuva à Terra, quanto mais ele a realizava, mais indagações rondavam o seu ser. Era século atrás de século mandando chuvas, ouvindo preces, atendendo aos pedidos e para quê, afinal?

Os homens mundanos nunca trocavam com Pedro. Eles sempre sugavam o que o santo podia lhes oferecer. Fazia muito tempo que ninguém, absolutamente ninguém chamava Pedro para uma conversa, lhe apresentava um novo sorriso, um novo poema em sua homenagem. Era sempre um “São Pedro me dá chuva”, “São Pedro manda água pra plantação crescer”, “São Pedro para com a chuva que tudo já alagou”, “São Pedro, faz o céu estiar para eu ir pro Toa a Toa” “São Pedro isso, São Pedro aquilo”.

Todo dia era um pedido ou uma reclamação diferente que chegava até Pedro por todos os cantos. Sua caixa de email estava sempre cheia. Seu whatsaap não parava de apitar. Seus ouvidos fervilhavam com os pedidos que chegavam através do sussurro do vento. E ele se cansava. Ficava cabisbaixo, quieto, sempre no seu canto. Ai vinha João, com seu rebanho de carneirinhos, e dava um ânimo para Pedro. Sacudia ele, mostrava-lhe a necessidade do dom da paciência ser alimentado todos os dias, assim como a resiliência e a serenidade. Pegava na mão do irmão e, juntos, iam passear pelos matos, tomar um chá, brincar com os bichos.

De todos, João era o que mais gostava de Pedro e lhe tinha preocupação. Nasceram bem próximos um do outro e começaram a entender a existência juntos. Sempre que voltava de uma tarde com o irmão, Pedro sentia-se revigorado, pronto pra tocar a vida, até que todas as chateações fossem, novamente, acumulando dentro de si e lhe enchendo mais uma vez.

Era um eterno ciclo que perdurava entre os séculos na vida de Pedro e lhe tirava a energia existencial. E ai, o santo perdia-se na transcendência dos seus pensamentos. Buscava no horizonte do infinito o sentido do seu ser. Se embriagava de elixir no Bar Celeste e lia. Lia de tudo que se pudesse imaginar. Era filosofia, literatura, poesia dos mais variados tipos. Encontrava nas reflexões que as leituras lhe proporcionavam o acalanto para o seu espírito.

Depois de mais de vinte séculos pensando, absorvendo e tentando aplicar todas aquelas leituras no seu dia a dia, Pedro chegou a algumas decisões. A primeira partiu do princípio de que os humanos que o criaram não eram perfeitos. E se seus criadores não eram perfeitos, logo, ele também não poderia ser uma criatura embevecida de perfeição, como todos esperavam. Então decidiu se permitir mais. Passou a sair mais vezes, que não só nas quintas feiras.

Aos fins de semana, começou a comparecer aos banquetes de Sócrates e se fartar com todo aquele alimento concreto que inundava e satisfazia o seu ser. Nas segundas entrou para o time de futebol dos santos celestiais. Batia um baba com os manos e, quando sentia calor, até tirava a camisa, exibindo seus gloriosos músculos. Passou a brincar com o Pequeno Príncipe e sua flor, e até mesmo a tomar banho de bica.

A segunda decisão de Pedro é que resolvera tirar férias por tempo indeterminado. No verão passado paquerara uma grande feiticeira chamada Minavi e, agora, decidira lhe fazer uma visita e aproveitar para conhecer as belezas do Universo Miraculoso do Sul, que era onde ela morava. Ficaria lá enquanto se sentisse a vontade. Depois partiria para conhecer outros lugares que lhe desse na telha.

Por fim, a terceira e ultima decisão de Pedro foi, antes de partir para suas férias, implantar um sistema de chuvas para a Terra. Na verdade Pedro decidira fazer chover todos os dias, em todos os cantos do mundo. Só que a chuva, por sua vez, nunca iria saciar aos homens, até que eles pudessem compreendê-la em toda a sua essência. Quanto mais chovia nos lugares, mais seco eles se tornavam. O sol castigava e a vermelhidão, a poeira, o suor tomava conta da Terra.

Os homens não conseguiam compreender como era capaz de chover em secura. A trovoada seca. A água seca. As vidas secas. De início, desesperados, todos se voltaram para Pedro, lhe pedindo socorro, lhe exigindo explicações, mas este não ouviu, pois há muito viajara para outras terras. Depois, vendo que o santo não lhes atendia, voltaram-se uns contra os outros. Tentavam se matar, mas não morriam. Estavam na seca e, apesar de toda a água que caia sem parar, tinham sede a cada respiração. Brigaram entre si. Inúteis, alimentavam raiva, ódio, violência uns nos outros.

Só depois é que voltaram para si mesmos. Perceberam-se como impotentes, inquisidores, inundados de egocentrismo e prepotência. Entenderam também que a sede que tinham era de sangue. Sangue que gera vida e que circula entre as diversas camadas de existência. Aí começaram, aos poucos, entender a chuva, a seca e a sede. Começaram a compreender a si mesmos enquanto chuva, seca e sede, mas mais ainda enquanto homens, criadores e criaturas.

A vida mundana se transformou depois que a chuva seca passou a vir, todos os dias, banhar a Terra. Histórias aconteceram. Guerras. Criação de novas tecnologias. Casos de loucura. Mas também alegrias. Entendimentos. Reflexões. Os homens pararam de atentar e exigir tanto do santo. E Pedro conheceu outros universos, se apaixonou, criou poesias, encheu a cara, aprendeu a amar, descobriu em si o perdão. Foi se tornando cada vez mais humano, assim como os seus criadores. E, quanto mais passou a se reconhecer como imagem e semelhança dos homens, mais compreendeu suas falhas, limitações. Seus medos. Depois de mais de um século e meio, a chuva seca estiou, a sede findou-se e Pedro e os homens tornaram-se amigos.

Dizem que ele se apaixonou tanto pela Terra e seus habitantes, que realizou outro milagre e hoje vive aqui, no meio de nós, mas que, no entanto, não veio como homem, e sim como menino. Pedro menino. Pedro menino que brinca com passarinho, toma banho de cachoeira e também de mar. Pedro menino que mexe com as meninas, suspende a saia das mulheres e depois sai correndo para não levar bronca. Pedro menino que acorda sorrindo, com o coração palpitando de felicidade em ser criança. Pedro menino que agradece todos os dias ao Pedro homem dos céus, não apenas por ser Pedro menino, mas também por ser Pedro do mundo.



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