Tome Nota – Especial Carnaval: Notícias do lado de cá

hey joe

Por Mariana Kaoos

“Antes que o mal cresça, antes que eu desapareça: me beija me olha me agarra me deixa sambar. O samba da minha terra deixa a gente mole, descole essa, faça você mesmo o seu, apareça como a luz do sol, mande notícias pro meu endereço , peço: antes que o mal cresça, antes que eu desapareça”. Torquato Neto.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Alô alô amantes da cultura de toda a minha bonita e fértil Pindorama. Aqui quem fala é Mariana Kaoos, sua fiel correspondente, diretamente das terras tupiniquins da Cidade da Bahia. Me digam, como foi o fim de semana? Tudo certo e nada errado? Por aqui anda tudo às mil maravilhas, num completo caos antropofágico cultural. Salvador continua enigmática como sempre. Digo enigmática por conta da sua enorme complexidade em abarcar o belo e o feio, a leveza e o peso, a dor e a alegria e a obviedade e o mistério dentro de si. É meu amigo, confrontar a realidade e a fantasia que essa cidade promove não é fácil não. Contudo, entretanto, porém, todavia, estamos aqui mandando brasa. Se você quer saber, está sendo uma delícia. E já que é assim, como prometido anteriormente, vamos aos burburinhos culturais:

Antes de mais nada, julgo aqui ser importantíssimo lhe passar essa informação: Salvador tem ladeira como o quê. Ê cidadezinha cremosa que nos coloca para subir e descer ladeira, subir e descer ladeira, subir e descer ladeira. Só para você ter ideia aqui tem a ladeira da Montanha, da Preguiça, da Barra, da Caixa D’água, do Curuzu, do Carmo e por aí vai. Se você for leigo no assunto, prepara, porque em menos de dois dias suas perninhas torneadas estarão inchadas e doloridas. E nós não queremos isso, queremos meu bebê? Na na ni na não. O que nós queremos é muito gingado e disposição para jogar nossos corpos no mundo e andarmos por todos os cantos. Loooooogo, Kaoosinha aqui vai lhes dar a dica do poder. É quase um tutorial de como subir e descer a ladeira aqui em Salvador.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa
  • Coloque o seu quadril para frente;
  • Coloque o seu tronco (principalmente os ombros) para traz;
  • Dobre os seus braços até o peitoral e feche sua mãozinha, como se você fosse lutar boxe;
  • Comece a mexer sua bunda de um lado para o outro, sem balançar muito o tronco. O movimento tem que ser só dos quadris;
  • Continue mexendo a bunda e, movimente os pés como se estivesse passando pano na cozinha de casa. Só que para os lados, não para frente;
  • Incline sua cabeça para o lado direito (ou esquerdo, como for melhor e de sua preferência);
  • Morda levemente os lábios;
  • Coloque algum samba de roda ou afoxé para tocar;
  • Desça assim até o final da ladeira;
  • Caso você queira subir e não descer, siga as mesmas instruções, mas, ao invés de ser quadril para frente e tronco para trás, inverta: bunda para fora e tronco para dentro;
  • Foto: Maiêeh Sousa
    Foto: Maiêeh Sousa

Bebê, não adianta me enganar que eu sei que você já está aí treinando. Pois continue, sem vergonha alguma, que com cinco repetições você já estará fera em subir e descer ladeira e poderá desfrutar das maiores belezas de Salvador sem perder a disposição.

Agora que você já sabe as manhas do gingado e da malemolência, passemos a outro ponto: O Bloco De Hoje a Oito, que mais uma vez foi para as ruas. Como de costume, eles saem sempre oito dias antes do sábado de carnaval. Esse ano homenagearam o sambista Riachão, figura folclórica aqui da Bahia. E no mais? Tudo na mais perfeita paz. No mais foi tudo uma delícia como sempre. O bairro Santo Antônio ficou todo iluminado e colorido com as fantasias mirabolantes dos foliões. Gente de tudo que é tipo, de todas as idades, de todas as cores, de todas as belezas. A cada ano que se passa e que posso conferir de perto a saída do De Hoje a Oito, esmiúço as minhas certezas e constato que eu estava certa o tempo inteiro: Carnaval democrático se faz dessa maneira, sem cordas, com respeito, com o povo na rua brincando junto. Apesar de grande parte dos integrantes da bateria do bloco não utilizarem essa palavra, para mim o De Hoje a Oito no Santo Antônio é um grito de resistência e a solução para que a tradição e a essência carnavalesca não se percam por aqui.

Se o De Hoje a Oito é a solução e resistência, em contrapartida os camarotes são apartheid e opressão. Aqui no circuito Barra Ondina tá uma coisa de louco o tamanho e a estrutura de todos eles. Uma coisa megalomaníaca mesmo. O Camarote Salvador então que o diga. Para você ter uma ideia, ele ocupa a Praça de Ondina e ainda delimita uma área da praia exclusiva para ele. E olha, vocês podem até não acreditar, mas eu andei tendo umas conversas com minha mãe Iemanjá e ela me garantiu que não está feliz com isso. Pudera, também não é para menos. Se Iemanjá é a mãe de todos nós, como cercar uma área de seu mar para que apenas filhos “exclusivos” tomem banho lá?

Mas não tem revolta não. Não tem revolta porque enquanto os camarotes proporcionam suas festas internas e particulares para os foliões café com leite, quem toma as ruas da cidade é o povo. E que delícia é ser povo. Nada, absolutamente nada, paga a incrível sensação de se misturar e pular junto e ir atrás do trio elétrico. Porque, inclusive, atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. É chuva, suor, cerveja, calor, cigarro, mijo, churrasquinho de gato, pipoca doce, acarajé, enfim, cheiros dos mais variados tipos que se tornam um só. É olhar, dança, sorrisos, beijo, proteção. É música, sintonia, sinergia. É branco, mulato, negro, índio e todos lindos como a pele macia de Oxum. Tem violência sim. Tem agressão. Tem assédio sexual e moral. E é importante ressaltar que isso tudo precisa ser sanado. Mas a alegria, a comunhão e a sabedoria de se orgulhar por ser povo e se ver enquanto tal vale muito mais do que qualquer perigo, do que qualquer bloco de corda, do que camarote.

Na tarde de ontem foi dada a largada. O pré Furdunço na Barra atraiu gente de tudo que é tipo. Pudera. Já ficou provado e comprovado, certificado em cartório, de que o folião gosta é de brincar assim: sem cordas e na rua. Teve atração para todo mundo. Armandinho Macedo, grupo Alavontê, Márcia Castro, Otto, Baiana System, Silvia Patrícia e o que mais você imaginar. Era tanta gente, mas tanta gente, que mal dava para passar. Mas você tá pensando que eu achei ruim? Qual o quê. Eu achei foi uma delícia orgástica. Foi possível, depois de muito tempo, realmente foi possível observar alegria no rosto das pessoas. Ainda que haja uma total profusão de camarotes, ao que tudo indica, nós estamos retomando nosso espaço nas ruas. Isso é um indicio de que é possível que o carnaval possa, em algum momento, voltar a ser inteiramente nosso. Sem blocos de corda, sem camarote, sem apartheid, com o povo na rua brincando junto. A batalha continua. Que Exú possa abrir nossos caminhos.



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