O nome dela é Joanne

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Por *Ígor Luz

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Eu soube da história há algum tempo através de uma comunidade orkutiana sobre Harry Potter. Alguém compartilhou uma entrevista traduzida de J.K. Rowling, em que ela contava a saga que viveu até conseguir que a sua obra fosse publicada. Uma das dificuldades foi o fato de ser mulher. Para seu agente e consultores, meninas liam livros escritos por homens, mas meninos não leriam um livro escrito por uma mulher. Eles disseram à escritora que era preciso escolher algumas iniciais e depois colocar o sobrenome, pois assim os meninos e seus pais não saberiam que estavam lendo um livro de uma mulher. E assim foi feito. Quando li sobre o assunto, nada me surpreendeu e não fiquei chocado. Passei adiante, sem nenhuma culpa ou tristeza. Nem ao menos estranhei a situação ou refleti sobre o assunto. Tratei como uma coisa banal. Apenas mais uma informação qualquer sobre alguém que eu realmente admirava. Peço sinceras desculpas a vocês, mulheres. Desculpas por meu eu, macho e insensível, ter sido incapaz de entender o peso, a opressão e o machismo que até mesmo um nome carrega.

Mas o meu eu, homem machão e insensível, aprontou muito mais nessa vida, e vocês terão que fazer infinitas estantes para guardar minha coleção de desculpas. Tenho que pedir perdão de joelhos para aquela amiga querida do 3º Ano. Eu disse a ela e alardeei por todos os cantos da escola o quão ela era burra por continuar namorando o cara que a traía descaradamente. Julguei cruelmente e dei meu veredicto para os colegas na mesa da cantina: “Se ela está com ele é porque gosta de ser feita de otária”. E, ano passado, não satisfeito, esbravejei em uma mesa de boteco sobre outra velha conhecida dos tempos de juventude: “Tá apanhando porque gosta e não denuncia porque não quer!”. Me perdoem, meninas. Eu me sinto tão envergonhado pela minha ignorância e estupidez. Não conhecia muito sobre relacionamentos abusivos. Não tratei vocês como vítimas, que estavam sem forças para se erguer e sair de um inferno. Caberia muito mais o meu apoio, meu colo e meu abraço do que esses julgamentos sem propósito e sem nenhum conhecimento. Com todo meu arrependimento, desculpas.

E, desculpas (ainda tem vaga na estante?), por tantas vezes que chamei várias de vocês (e até a minha própria mãe) de loucas, histéricas e dramáticas, numa tentativa infeliz de inferiorizar mulheres tão queridas em minha vida. É tão cruel colocar em pauta a sanidade de vocês, que palavras não foram inventadas para pedir mais este perdão. Já que estamos falando de rebaixar o sexo, tenho que me dar vários tapas na cara por todas as vezes que soltei “está chorando igual a uma mulherzinha” para os amigos. E lamento tanto por aquele dia em que eu carreguei meu colega de trabalho recém-solteiro para o bar, porque ficar em casa vendo filme embaixo de coberta “é coisa de menina”. É tudo tão patético, vergonhoso e desnecessário, que simplesmente entenderei se vocês não quiserem perdoar.

Desconhecida do vídeo íntimo espalhado pelos grupos do WhatsApp, peço desculpas por ter te chamado de puta e não ter soltado nenhuma palavra sobre o cara que divide a tela com você ou o outro que mandou a mídia para o meu telefone aos risos. Nossa, como eu fui cruel com você e em nenhum momento imaginei que poderia ser a minha irmã ou prima naquela situação. E, desculpa, menina da saia curta e brincos grandes que chegou acompanhada do vizinho no meu aniversário. Não lembro exatamente o que comentei, mas foi algo como “aquela ali tem cara de danada”. Logo eu, que amo soltar nas redes sociais que apoio o feminismo e que odeio injustiça. Não passo de um hipócrita nojento. Também tenho que pedir desculpas para aquela conhecida do mercado de trabalho que estava desmaiada na última festa open bar. Soltei um “que feio para mulher!”, em um machismo tão escancarado e imbecilizado que não existem argumentos para me defender. Só posso me desculpar e conviver com essa culpa. O “que feio para mulher!” também já acompanhou outras moças: as que fumam, as que fazem sexo no primeiro encontro, as que compram camisinha na farmácia, as que sentam de pernas abertas, as que soltam palavrões, as que não têm paciência com maquiagem e cabeleireiro. Desculpa, desculpa, desculpa e desculpa. E tenho que lembrar de me desculpar com a caloura que participa do movimento “Eu escolhi esperar!” por chamá-la, ironicamente, de “santinha”. A gente é tão maldoso com as mulheres que julgamos as que fazem sexo e também as que não fazem. Nenhuma escapa do nosso tribunal.

Ah, antes que eu me esqueça, desculpa, amiga, por ter te chamado de “exagerada” quando você implicou com o “psiu” do carinha que passava na rua. “Ah, você também enxerga maldade em tudo!” Na minha cabeça estúpida, o moço estava fazendo um elogio. Demorou muito, mas hoje eu entendo que apenas tenho que ouvir calado você me falar o que é assédio. Eu não tenho que decidir nada e nem falar o que está certo ou errado neste ponto, porque sou homem e nunca vou passar na pele as coisas que você passa. Desculpa, mesmo, eu tenho apenas que te apoiar. Desculpa também por falar que “amizade verdadeira é só de homem” porque “mulher compete sempre uma com a outra”. Essa patetice é difundida há tanto tempo, que a gente acaba replicando sem nem notar o quão isso é desrespeitoso. E, por favor, pode me olhar com desprezo toda vez que eu fizer uma piada sobre você no volante. “Ah, mas eu não tinha intenção de ser machista, eu só estava sendo engraçado”. Pois é, demorou um tanto, mas hoje eu sei que não tem um pingo de graça nessas pequenas humilhações. E também demorou para eu perceber que é na falta de intenção que construímos esse mundo tão cruel com todas vocês. Desculpa, mais uma vez.

Desculpa, mãe do menino que estava dando escândalo no mercado. A primeira frase que soltei para a minha tia quando vi o escarcéu da criança para levar um chocolate para casa foi: “Esse menino não tem mãe, não?” Como se o papel da educação fosse apenas seu. Jogamos toda a responsabilidade para a mulher. É ela a culpada por dar atenção de menos, ou pela superproteção, ou por deixar muito sozinho, ou por exigir demais, ou por não ser presente, ou por colocar muitas regras, ou por deixar muito livre… UFA. Vocês aguentam toda essa pressão e ainda têm que aturar um petulante com olhares julgadores. Desculpa, mesmo.

Vocês já foram abreviadas, julgadas e humilhadas demais. Hoje, neste Dia Internacional da Mulher, eu não vou mandar flores e nem ficar repetindo que vocês são lindas e especiais. Não vou soltar frases de músicas ou escrever poeminhas com rimas. Eu só quero mesmo pedir desculpas. Desculpas por bater no peito durante anos dizendo que não sou machista porque nunca bati em mulher. Desculpas por falar que sou feminista porque acho injusto mulher receber menos do que os homens para desempenhar as mesmas funções. Desculpas por me achar tão politizado por ser a favor do aborto. Desculpas por me achar grandioso por amar a Simone de Beauvoir, a Chiquinha Gonzaga e a Lou Salomé. Desculpas por não ter percebido que as minhas pequenas atitudes machistas são grandes demais e só atrapalham o discurso e a causa de vocês. Se o machismo está enraizado em minha cultura, eu estou disposto a cavar o meu quintal com uma enxada na mão em sua procura.

Não podemos reduzir mais vocês. De hoje em diante, a escritora genial que teve que esconder o seu nome e o seu sexo atrás de iniciais, não mais será chamada de J.K. por mim. O nome dela é Joanne. Joanne Rowling, a escritora mais bem sucedida na história do mundo. Que feio para uma mulher, não é não?

*Ígor Luz é jornalista diplomado, publicitário por acaso e social media por vocação. Um cara apaixonado pelas palavras, que cresceu rabiscando textos em um caderno surrado com capa do Patolino. Hoje, escreve sobre relacionamentos, incômodos e comportamentos no Meu Blog Não É Diário.



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