Teatro em Vitória a Conquista e Dona Dó Ré Mi

Por Mariana Kaoos

Fotos: Igor Ramos
Fotos: Igor Ramos

Sabe aquela expressão que utilizamos quando não sabemos especificar um recorte de tempo e espaço de determinado acontecimento? Ou, quando esse determinado acontecimento enraizou-se de maneira tão intensa em nós que se faz impossível distinguir quando ele veio e quando irá partir? Para essas e outras mais situações, nos apropriamos do “desde sempre”.

– “Desde sempre Vitória da Conquista é um polo cultural!”

– “A cultura é um bem social que recebe estímulos do poder público e privado desde sempre”

peça 2

– “Quando os artistas locais passaram a receber apoio municipal? Ah, desde sempre!”

Se por um lado “desde sempre” indica um desconhecimento em relação ao “quando” e “onde”, por outro ele sugere uma ideia de permanência, continuidade, coisa ininterrupta. Para quem lida com o jogo de palavras, é extremamente perigoso a utilização do “desde sempre” justamente pelo simbolismo e significado implícito imerso em cada sílaba da expressão.

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Porque veja bem, se pensarmos a questão do advento do teatro no período clássico da Grécia antiga até os dias atuais, podemos sim dizer com precisão que ele está desde sempre permeando a existência humana. Se deslocarmos a frase e trouxermos para o nível local, mais precisamente à Vitória da Conquista, aí já se faz dificultoso emprega-la em alguma afirmação.

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Você pode se indignar e me dizer: “Mas pera aí, mesmo que aos trancos e barrancos o teatro está em Vitória da Conquista desde sempre sim”. E eu, precisamente, lhe responderia: “De que maneira ele está? Quais as companhias locais que estão atuando a nível municipal e sobrevivendo disso? Cadê os editais públicos? Eles estão sendo feitos destinados à produção de teatro por aqui? Por onde andam as empresas privadas que apoiam a cena e oferecem estímulos financeiros para que o teatro prossiga de maneira viva e atuante? De que maneira os veículos de comunicação atuam na divulgação e cobertura de peças teatrais? Os espetáculos podem até estar sendo pensados e produzidos, mas e a distribuição, como fica? Que espaço, locação, comporta peças de teatro na cidade? Quem está fazendo a formação de público voltado para esse segmento cultural?”.

Ah, quase ia me esquecendo da pergunta, que para mim, é a principal: “A Cia Merie Marrie de teatro nunca mais fez coisas novas. O grupo Caçuá faz tempo que não dá as caras e, acredito eu, que tenha se desmantelado. Sônia Leite e família estão em Salvador. Ellen Villa Nova tem trazido algumas peças, mas todas de fora. A Cia Operakata, apesar do reconhecimento nacional, tem muitas dificuldades em realizar espetáculos aqui. A FMB produções, vez ou outra, também traz algumas peças, mas anda pouco atuante nos últimos tempos. Sendo assim e assim sendo, como manter viva a cena teatral da cidade? Quem sai? E, em meio a tantas dificuldades e empecilhos, quem fica?”.

Bom, as perguntas poderiam prosseguir com veemência. Contudo, o foco dessa matéria opinativa não é apenas esse. O foco dessa matéria opinativa é falar um pouco sobre a mais nova produção da Cia Operakata de Teatro, a peça infantil Dona Dó Ré Mi, que esteve em cartaz nos dias 14 e 15 de agosto.

Primeiramente (fora Temer) se faz necessário exaltar a empreitada da Operakata. Destinada a todos os públicos, mas com um enfoque maior no infantil, Dona Dó Ré Mi é uma peça cantada que cumpre de maneira ímpar com seus objetivos: possui uma direção musical de excelência, apresenta um universo lúdico e envolvente, oferece uma experiência táctil à plateia e se preocupa com a formação do público que, para mim, é o principal de todos: as crianças.

Digo, assistir Dona Dó Ré Mi no Teatro Municipal Carlos Jehovah me foi uma experiência inusitada e feliz. A peça aconteceu no horário das 16 horas e contou com a forte presença da plateia mirim, acompanhada de familiares. Foi criança para tudo quanto é lado, correndo, gritando, brincando, soltando gargalhadas. Meninas com seus vestidos rodados e cabelos bem penteados. Meninos de tênis, jaqueta e calça jeans. De todas as idades. Na sessão teatral, havia pequerruchos ainda de colo, bem como os mais grandinhos. Todos, absolutamente todos, pareciam estar ávidos, empolgados com o espetáculo apresentado.

Isso foi lindo de se ver. Crianças de verdade, com papos e comportamentos propícios para sua idade, reunidas a fim de consumir cultura de qualidade. Devo confessar que em meio a essa sedução tecnológica e individualista das redes sociais e dos jogos eletrônicos como a mais nova febre, o Pokemon Go, eu realmente desconfiava de que havia acontecido a extinção de crianças que brincam, interagem umas com as outras, e descobrem um universo mágico e cheio de cor que existe por traz das telas de touch screen. Não só crianças. Eu também andava desacreditada de pais que ainda prezassem por uma educação mais palpável, com um olhar para a cultura de modo geral, acreditando que ela é também grande responsável pela formação de valores, personalidade e criatividade na vida de um ser humano.

É com muita alegria que eu constato que errei no meu juízo de valor e que (ebaaaaaaa!) as crianças e os pais reais existem e compreendem o verdadeiro significado da arte e da cultura. E bom, voltando ao espetáculo, outro ponto positivo: A arte principal, pensada e realizada pela artista Ully Flores, assim como o cenário estavam de uma beleza sem tamanho. A inserção de projeções que interagiam com o que estava sendo cantado, também foi uma sacada genial. No palco, alguns elementos como pantufas de monstro, óculos para nadar e uma boneca bailarina chamaram e prenderam a atenção do público infantil.

Acredito que os únicos pontos não tão legais foram a questão do atraso (e nisso eu fico abismada como em absolutamente todas as produções que eu vou conferir o atraso acontece de maneira exorbitante e, para mim, isso se traduz como falta de respeito ao público) e o excesso de músicas no espetáculo. Houve pouca fala, pouca interação com a plateia e, em dados momentos em que uma canção praticamente grudava na outra, o espetáculo ficou um tanto quanto cansativo e maçante. Porém, nenhum desses dois fatos tiraram a beleza e importância de Dona Dó Ré Mi. Kécia Prado, além de ótima atriz, é também uma boa cantora. Sua performance em palco, em dados instantes, me lembrou muito Adriana Calcanhoto em Partimpim, disco que, visivelmente, foi forte inspiração para a peça.

Não sei quais os novos planos da Cia Operakata de agora em diante. Se pretendem circular em outras cidades com Dona Dó Ré Mi ou se novas produções já estão sendo idealizadas e produzidas para a nossa cidade. Também não sei como as outras companhias e produtoras culturais pensam e se planejam em relação ao teatro em Vitória da Conquista de agora em diante.

Sei que o Sistema Municipal de Cultura ainda não foi aprovado pela Câmara Municipal de Vereadores e que, pelo menos do poder público não se poder esperar muito em relação a apoio financeiro. Já do poder privado, seria injusto dizer que não temos alguns (pouquíssimos) empresários que se preocupam e investem em cultura na cidade. Mas é preciso ainda mais. Artistas e ideias nós temos aos montes, qualidade também. Público interessado eu garanto que não falta, jornalistas dispostos a divulgar e cobrir esses espaços tampouco.

É utópico demais pensar que a estrutura econômica, política e social de Vitória da Conquista irá se transformar de um dia para o outro e passar a oferecer o ambiente propício para que, de fato, a cidade seja considerada como um polo de produção cultural. Contudo, se faz cada vez mais urgente que artistas, consumidores, pensadores, jornalistas, militantes se unam para pensar a maneira como a cultura vem sendo conduzida no município. Há de se cobrar e há de se ter extremo cuidado, zelo para que o discurso possa se alinhar a pratica de maneira sólida e real. Não sei se essa consciência culturalista existe em Conquista desde sempre, mas acredito piamente que ela possa passar a existir desde agora. E que a vertente teatral possa ressurgir com vigor, tendo o espaço e o reconhecimento que ela realmente merece.



Cultura, Destaques, Vitória da Conquista

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