Confira uma reportagem especial sobre a Parada Gay 2015 de Vitória da Conquista

atlanta

Por Mariana Kaoos

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Verão de 2013. Duas horas da tarde de um domingo de carnaval. Praça Castro Alves. Salvador. Bahia. Brasil. Multidão. Cheiro de mijo, cerveja e churrasquinho de gato. Calor. Crianças na cacunda dos pais. Pessoas espremidas. Suor. Afoxé. Cordas. Trio elétrico. Tapete branco da paz. Bloco de carnaval. Alfazema. Turbante. Muitos colares. Intensa energia. Mulheres fora da corda. Homens dentro da corda. Saída oficial dos Filhos de Gandhy.

Sim, porque se tem dois blocos tradicionais de Salvador que arrasta multidões fiéis que acompanham desde sempre a saída deles (que na verdade é a entrada) no carnaval baiano são o Ilê Ayiê e os Filhos de Gandhy. Os Ghandys, em especial, possui várias peculiaridades interessantes. Ele foi fundado no ano de 1949 por estivadores portuários e, desde o início, veio com a proposta de um bloco segmentado para o público masculino. Atualmente ele conta com mais de dez mil integrantes, além dos foliões que, durante o carnaval, o escolhem para desfilar.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Aí os homens se fantasiam com um turbante, uma espécie de mortalha e vários colares com bolinhas azul e branca. Quando eles beijam alguma pessoa, independente do gênero, o colar é dado como presente. Não há quem não goste dessa tradição. Na verdade, ela é esperada pela grande maioria. Existe meio que uma espécie de glamour em dizer “eu beijei um Gandhy” e desfilar com um ou vários colares no pescoço.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

A minha humilde opinião é que por trás desse rito existe em vigor todo um sistema heteronormativo machista. O ato de dar o colar é uma tentativa sublime de “marcar” alguém. Dizer que ela já passou pelas mãos de um Gandhy e que, agora, ainda que ela fique com outras pessoas, ela é “propriedade” dele. Uma mulher que anda pelos percursos do carnaval baiano com um ou dois colares é aceitável e bem vista. Já as que trazem no pescoço diversos colares é considerada piriguete e não há como fugir desse status.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Vitória da Conquista. Oito de novembro de 2015. Primavera. Sexta Para Gay na cidade. Trio elétrico. Bandeira enorme com as cores do arco íris. Meio da noite. Fim de festa. Música eletrônica. Pessoas bêbadas. Muitos beijos. Beijos triplos. Beijos quádruplos. Beijos quíntuplos. Curtição. Suor. Risadas. Menina. Menina lésbica. Menina lésbica sentada no meio fio. Menina lésbica sentada no meio fio com um colar de Gandhy no pescoço.

Isso me chamou extrema atenção porque fiquei me perguntando qual o motivo de alguém levar um colar de Gandhy para aquele espaço e qual a intenção em dar esse mesmo colar para a menina do meio fio, que provavelmente foi uma das conquistas da noite. Sabemos que para acabar com a homofobia é necessário também extinguir o machismo, o patriarcado e todas essas regras de conduta moral e ética estabelecidas socialmente. Sabemos também que o objetivo de uma parada lgbt (e dos espaços políticos que ocorrem antes e depois dela) é dar visibilidade aos gays, lésbicas, transexuais, etc e apresentar uma proposta de nova consciência, já que essa parcela oprimida da população existe, exigindo mais direitos, igualdade e respeito.

Será que o ato do colar oferecido, ainda que de maneira inconsciente, veio com o mesmo objetivo dos Gandhys, heteronormativo e machista, de glamurizar, bem como “marcar território”? E será que a presença desse mesmo colar na Parada Gay é um simbolismo de carnavalização da mesma?

Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval…

Tem um cara muito bacana, usado por diversos acadêmicos ligados aos estudos da cultura popular, bem como do discurso e da linguagem, chamado Mikhail Bakhtin. Em um dos seus livros mais célebres (A Cultura Popular na Idade Média e No Renascimento: O Contexto de François Rabelais) ele fala um pouco do que são os ritos e do próprio artifício da carnavalização, ou carnavalesco, como costuma utilizar.

Os ritos nada mais são que um processo de passagem. Através de sistemas simbólicos como palavras, gestos, indumentárias, posturas, dentre outros, nasce um significado, uma relevância para algo em especial. É um rompimento. Uma quebra. Um deslocamento. Uma transformação. Para Bakhtin o carnavalesco é uma espécie de rito. E aqui esse carnavalesco não está falando do período do carnaval, a festa da carne que antecede os 40 dias da Quaresma. Aqui, estamos falando do carnavalesco como um fenômeno, um espetáculo ritualístico que funde gestos e ações e, a partir daí, cria um significado, uma linguagem sensorial e simbólica.

Durante toda a Parada LGBT foi possível observar os ritos, bem como a presença do carnavalesco. A concentração ocorreu na Praça Guadalajara, a partir das 14 horas. Quem abriu a programação foi o cantor Fillipe Sampaio com um repertório que compreendeu o axé, ijexá e mpb. Nesse momento a bandeira já estava estirada no chão e as pessoas transitando de maneira frenética. Na sequência, os organizadores do evento subiram ao trio, dando início à abertura oficial. Houve muitas falas políticas e contundentes, o que gerou um teor sério, justificando o porquê de uma Semana da Diversidade e de uma Parada Gay em Vitória da Conquista.

Quando as falas cessaram, dj Tony e a sua música eletrônica passaram a ecoar por todo o local e o trio começou a sair. Outros djs também se apresentaram ao longo do percurso. E aqui cabe uma crítica, ou uma dica, como melhor preferirem: a música eletrônica é bacana, ainda mais se interligada com o pop, contudo ela é muito segmentada e não tem força suficiente para animar e fazer com que o público queira seguir um trio elétrico. Talvez se colocada apenas como ultima atração, ela renda mais. No ano em que a banda soteropolitana Suinga se apresentou na Parada, o público se encontrava muito mais agitado e fiel. Se ontem houvesse uma banda, ou até mesmo se Fillipe Sampaio se apresentasse com o seu repertório em cima do trio, certamente que a Parada teria sido ainda mais animada e legal do que foi.

E a multidão vendo atônita, ainda que tarde, o seu despertar…

Independente da escolha do estilo musical, da falta de banheiros químicos espalhados pelo percurso ou de qualquer outra falha da produção, foi de suma importância a realização dessa sexta Parada LGBT em Vitória da Conquista. Heterossexuais, crianças acompanhada dos pais, idosos, famílias em geral também estiveram presentes apoiando a causa, mostrando assim que compactuam com a necessidade de visibilidade e conquista de direitos para a população LGBT.

A diversão, a paquera, a dança é fundamental. Mais importante que tudo isso é a criação de novos valores, a retomada da consciência e a mudança individual e coletiva de posturas e práticas no dia a dia, que sempre trazem uma ideologia embutida nelas. Talvez por isso não caiba aqui o colar do Gandhy. E talvez aqui se faça extremamente necessário vigiar e questionar as nossas próprias posturas que, de tão sutis, passam despercebidas, mas falam muito do que somos, acreditamos e fazemos.

Os espaços de debate e empoderamento ainda estão ocorrendo. Na verdade a programação só se encerra no dia 15 e, daqui até lá, é importante que todos nós, independente da orientação sexual, ocupemos com vigor tudo o que a programação ainda irá oferecer. É preciso aprender, compreender, analisar, questionar e respeitar para, em seguida, modificar. Tomara que mais do que um espaço para beber e beijar na boca, a Parada Lgbt de ontem tenha sido, para todos os presentes, um despertar e um rito de passagem que irá originar, daqui pra frente, mais lutas, mais conquistas, mais comunhão.

 

Bibliografia:

Carnaval, Malandros e Heróis – Roberto DaMatta

A Cultura Popular Na Idade Média e No Renascimento: O Contexto De François Rabelais v- Bahktin

Carnaval e Baianidade: Arestas e Curvas Na Coreografia de Identidades do Carnaval de Salvador – Milton Moura



Cultura, Vitória da Conquista

Comentário(s)


One response to “Confira uma reportagem especial sobre a Parada Gay 2015 de Vitória da Conquista

  1. A festa é importante mas não é tudo. As paradas LGBT estão virando modinha de micareta no Brasil inteiro.

    No entanto, o debate sobre a diversidade como direito humano me parece cheio de preconceitos e setores reacionários parecem muito mais organizados e representados em instâncias de poder.

    Sai durante cinco anos nos filhos de gandy, uns quinze anos atrás (to velho)…

    Não acho q a intenção seja marcar uma mulher…é que muito antigamente, quando saiam relativamente poucos integrantes frente aos números atuais e os cordões não eram vendidos como hj. Eram até um pouco caras, feitas de acrílico, usadas mais para quem era de preceito.

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