Por Mariana Kaoos
“Mas não importa, não faz mal, você ainda pensa e é melhor do que nada. Tudo que você podia ser…ou nada!”
É incrível o poder que as palavras possuem. Os romances, crônicas, os textos acadêmicos. É incrível porque todos eles, em preciosos e distintos graus, nos transcendem, libertam e influenciam as diversas instâncias de nossas existências. Digo, como não desconstruir o nosso íntimo após ler A paixão Segundo G.H.? Ou como não remodelar as nossas instâncias políticas e sociais após a leitura de Governo de Si e dos Outros? E as nossas relações amorosas, como elas se engrandecem após nos apossarmos das palavras de Drummond?
Tenho lido Benjamin. Walter. Walter Benjamin. Um dos pensadores mais geniais da Escola de Frankfurt, período entre guerras. Benjamin é um teórico muito citado dentro dos cursos de comunicação social, ciências sociais, até mesmo de filosofia. Ou seja, ele é um cara preci(o)so e fundamental na academia. Contudo, para mim, sua importância vai além. A obra de Benjamin é extensa e perpassa por questões centradas em teorias Kantianas e em temáticas como arte, estética e política.
O ultimo texto que li dele foi O Narrador – Observações Acerca da Obra de Nicolau Lescov. Sintetizando de maneira breve e superficial O Narrador, o autor aborda a questão de como o surgimento da modernidade ocasionou a perda das narrativas. Numa sociedade em que as experiências minguaram o seu valor e que a informação, curta e objetiva, angariou espaço prioritário na comunicação entre as pessoas, a narrativa, relíquia preciosa de contar histórias e estórias, foi se diluindo pouco a pouco e perdendo espaço na vida e no cotidiano social.
De acordo com Benjamin, a narrativa, geralmente transmitida de forma oral, é quase que um trabalho de artesanato. “Sua intenção primeira não é transmitir a substância pura do conteúdo, como o faz a uma informação ou uma notícia. Pelo contrário, imerge essa substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio”. Uma outra passagem do texto que eu gosto muito é a que ele se utiliza de uma citação de Paul Valéry a fim de, talvez, tentar sintetizar a experiência da narrativa: “A observação artística pode alcançar uma profundeza quase mística. Os objetos que escolhe perdem o seu próprio nome. Sombra e claridade formam sistemas especiais, constituem questões particulares, que não se subordinam a nenhuma ciência e nem procedem de prática alguma, mas cuja existência e valor derivam exclusivamente de certos acordos, que se verificam entre alma, olhos e mãos daquele que nasceu para entende-los e provoca-los no seu íntimo”.
Queridos, o que mais posso eu falar de Benjamin e d’O Narrador? Certamente, que ando vorazmente apaixonada pelas palavras e conteúdo do texto e do autor. E, como bem sabemos que toda paixão nos dilacera e nos faz olhar o universo através de seus olhos, com essa específica não poderia ser diferente. Fiquei cá pensando com meus botões não apenas no jornalismo (se apenas informativo ou com uma veia narrativa) que é praticado em Vitória da Conquista, como também nas produções culturais da cidade.
Vejam bem vocês, dia desses fiz outro artigo abordando a questão da diferença das produções de entretenimento e as produções estéticas e culturais. Não sei se vocês vão pegar o fio da meada, mas sem nenhum pudor, ouso dizer que essas mesmas produções de entretenimento, quando elaboradas, seriam também produções de informação, enquanto as produções estéticas e culturais seriam produções de narrativas. Produções de narrativas porque há estórias lúdicas engendradas em seus aspectos de visuais, ideológicos, sonoros, identitários.
Na noite dessa terça feira, 22, por exemplo, fui ao Teatro Municipal Carlos Jehovah conferir a Mostra Cênica de Primavera – Awery, comandada por Adriana Amorim e toda sua equipe da Cazazul. A Mostra é o resultado de oficinas, promovidas pela equipe, que dialoga com diversas linguagens artísticas, dentre elas a cênica, a percussiva e a corporal, através da dança.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi a quantidade de pessoas presentes. Confesso que posso ter subestimado o evento um pouco e, por isso, me surpreendi. Um público visivelmente híbrido. Aqui em Conquista temos uma mania terrível de dizer que a cidade é um ovo e conhecemos todo mundo. Falsa ilusão. Na Mostra vi alguns rostos que tenho como referência de proximidade. No entanto, eu desconhecia 75% da plateia. Uma galera muito jovem e avidamente sedenta por cultura de qualidade. Ao contrário do que o poder público e privado parecem pensar, já que pouco investem no segmento, nós temos uma formação de público forte e fértil no que diz respeito ao universo teatral.
Quando as luzes foram apagadas e todos já estavam acomodados, pude perceber empolgação nas expressões alheias. Atenção também, claro. Foi mais um daqueles momentos em que nos esquecemos das tecnologias, da necessidade das representações nas mídias sociais e do mundo lá fora, para direcionar toda a sua existência à narrativa do próximo instante. E assim o foi.
Na noite de terça (lembrando que hoje, quarta feira, tem mais) duas esquetes foram apresentadas, um solo de dança afro e um grupo de percussão. Como o nosso queridíssimo colunista do Blog do Rodrigo Ferraz, Vilmar Rocha, que também esteve presente, fará um texto mais focado nas impressões das apresentações em si, não pretendo me ater tanto nisso. Contudo, me atrevo a elencar alguns comentários:
– O Grupo Percussiclável, comandado por David Prates, foi incrível. Lays Lopes, Renato Schetitini e Tuan Pimenta tocaram em instrumentos de material reciclável, acompanhados pelo lindo, amado, idolatrado, salve salve, Fillipe Sampaio. Estava tudo muito cadenciado e bonitinho. Tauan, o mais novo do grupo, estava uma fofura que só tocando de olhos fechados e sorriso no rosto;
– A dança afro, apresentada por Joadson Prado, também foi muito bacana. Acho que a escolha da música poderia ter sido melhor pensada, porém, ela não atrapalhou a beleza do solo;
– As esquetes foram um tanto quanto ousadas. A primeira, intitulada De Braços, foi uma adaptação de Nelson Rodrigues e não me agradou muito porque Nelson é um cronista incrível, mas todas as tentativas de adaptação de sua obra (as que vejo) caem sempre num lugar comum. Já a segunda esquete, Das tripas em-laçadas (adaptação de O Abajur Lilás, de Plínio Marcos), foi visceral, intensa, rasgante. A atuação de Jô Oliveira foi incrível, bem como a de Luã Virgens e Hannah Abnner. Acredito que esses três nomes ainda vão nos surpreender muito por aqui;
Passadas pouco mais de uma hora, as apresentações findaram-se e a equipe agradeceu aos presentes e se despediu. Bom, o que venho achando mais legal disso tudo é que todas as iniciativas de produção de Adriana e sua equipe tem se configurado como uma grande narrativa cultural para a cidade. Em meio aos mais de três anos de reforma do Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, a dificuldade de pauta no Carlos Jehovah, o descaso do poder público e privado com a cultura de e em Vitória da Conquista, a falta de espaços, de equipamentos, de incentivos e, até mesmo a falta de reconhecimento, é de uma resistência e subversão tremenda dar a cara a tapa e colocar oficinas para girar e promover apresentações gratuitas e dar conta de uma casa que tenha a pretensão de ser um polo de criação e produção artística.
Além deles, quem mais está fazendo? Alguns outros, devemos enaltecer. Só que alguns outros geralmente numa perspectiva de lugar comum, cômodo, com uma fórmula gasta, mas que vende e que rende. Então, a pergunta certa seria: Além deles, dos integrantes da equipe Cazazul, quem mais está criando a partir de um lugar arriscado no novo?
O Sistema Municipal de Cultura foi aprovado, o Conselho de Cultura será formado, ouve-se um burburinho de que esse ano não haverá Natal da Cidade, a partir de primeiro de janeiro o PMDB assume a prefeitura, durante as campanhas políticas pouco soubemos dos planos do candidato eleito para a Secretaria de Cultura, o Centro de Cultura continua na mesma, a cidade anda explodindo de festas de entretenimento cada vez mais lucrativas e vazias em conteúdo e por aí vai.
O cenário e seus percalços anda muito incerto e, justamente por isso, é preciso que haja alguma voz que possa narrar os novos caminhos a serem descobertos e trilhados para a cultura local. Uma voz de resistência, de barbárie e, posteriormente, de revolução. Até o presente momento, tudo indica que essa voz pode ser a de Adriana Amorim através de suas empreitadas culturais. Esperamos, espero que de uma fala baixa e comedida, essa voz possa gritar cada vez mais. Para agora, a tarefa é ficarmos atentos ao que acontece e ocuparmos, porque ocupar é também resistir.