Conquista: Última noite do Festival de Inverno Bahia, Legião Urbana e Major Tom

Por Mariana Kaoos

Dentro do universo da cultura e das artes no geral, algumas narrativas literárias, cinematográficas, musicais possuem a intensa e estranha capacidade de adentrar de maneira voraz nas nossas existências e modifica-las por completo. Os criadores que geram as criaturas utilizam-se de suas mãos para dar vida a certos personagens que, de tão concretos, ganham uma história a parte e caminham no real palpável, inspirando, conduzindo, originando novas linguagens a partir de si próprio. Um desses seres criados no mundo mágico da imaginação e que tem a capacidade de refletir pensamentos, condutas e percepções mundanas é o Major Tom. Astronauta, alter ego de seu pai criador, um dos maiores nomes do rock do século XX, David Bowie.

Foto: Amanda Nascto
Fotos: Amanda Nascto

Major Tom, como acabei de dizer, é um astronauta que deixa a Terra para desbravar o espaço e ir além das estrelas. Originalmente ele pode ser encontrado em três músicas do Bowie: Space Oddity, Ashes to Ashes e Hallo Spaceboy. Com inúmeras interpretações, leituras e análises acerca do profundo e envolvente personagem, outros tantos artistas sentiram-se inspirados e confortáveis para criar novas histórias envolvendo o Major. Elton John, K.I.A., Lana Del Rey, e Five Star são alguns deles. Já outros, apesar de não se utilizarem de maneira direta, escancaradamente, foram influenciados por Bowie e toda a sua criação artística.

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No domingo, 28, última noite do Festival de Inverno Bahia, minutos antes do grupo Legião Urbana subir ao palco, a música que invadia a pista do Parque de Exposições Teopompo de Almeida foi Space Oddity, na voz inconfundível e inigualável de Bowie. Como se fosse um prenúncio do que estaria por vir, ou, quem sabe até como se fosse uma indução identitária, Major Tom se apresentou ao público, primeiramente através da clássica canção e, posteriormente, assumindo talvez um outro nome, tão conhecido, importante e misterioso quanto o seu. Entre delírios e conexões kaooticas, essa jornalista que vos escreve acredita piamente que ali, o grande Major Tom do David Bowie pode ser traduzido e reverenciado em ninguém mais, ninguém menos que o nosso Renato Russo.

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Com o cantor e ator André Frateschi nos vocais e os integrantes originais do grupo, Marcelo Bonfá e Dado Villa Lobos, respectivamente, na bateria e guitarra, a Legião Urbana entrou em cena, levando os fãs aos gritos efusivos de admiração e trazendo a forte, indissociável e insubstituível presença explícita de Renato Russo. Clássicos como Será, Tempo Perdido e Ainda É Cedo foram alguns dos hits incorporados no repertório do show que durou quase duas horas. Resumidamente falando, a presença do Legião no Fib foi morna, entediante.

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Digo, mais pareceu um tributo, assim como outros tantos outros que surgem Brasil afora. O público que, inicialmente, estava atento e atencioso para com a apresentação, após determinado tempo, começou a se dispersar e migrar para outros espaços como o Barracão Universitário e a Arena Eletro Rock. Visivelmente, o grupo Legião Urbana, apesar do nome, não possui mais a força e segurança de outrora. Contudo, acho bacana elencar alguns pontos e discorrer sobre isso:

. André Frateschi não tem força, intensidade em palco para segurar os vocais durante duas horas de show. Ele é fraco, insosso. Até mesmo a participação especial de Paula Toler, na música O Mundo Anda Tão Complicado, foi mais calorosa, angariando interação do público;

. Dado e Marcelo, contudo, parecem possuir o mesmo espirito juvenil de inovação e surpresas. Algumas músicas ganharam uma releitura fantástica, caminhando por outros gêneros musicais, até mesmo pelo (pasmem vocês) dub;
. Outra referência foi feita a David Bowie durante o show. Ao final de determinada música (que minha memória me trai e insiste em não lembrar), alguns versos de Heroes foram entoados de maneira apaixonada e apaixonante. Acredito eu que o roqueiro inglês não só foi como ainda é forte referência musical para a banda;

. Para minha grande surpresa, o público que foi conferir de perto o show de Legião era hibrido, diverso. Visivelmente pessoas mais velhas, provavelmente fãs desde a década de 1980, quando o grupo surgiu. Mas não só. Também estiveram presentes jovens de todas as idades e adolescentes de cabelos coloridos e camisas de rock. Fiquei muito feliz na constatação da qualidade e atemporalidade que é o trabalho de uma das maiores bandas que já houve no país. As melodias, letras e mensagens do Legião ainda tem a capacidade de atingir a geração y (como foi mostrado na tela de um celular, exibido no telão, durante o show);

. Bom, não há para onde correr. O talento e importância de Dado e Marcelo é inegável, mas a alma do Legião Urbana foi, é e acredito que sempre será Renato Russo. Seu nome foi invocado a todo instante e ficou claro que o grande protagonista da noite, embora não estivesse em presença física, era ele. Ouso questionar, inclusive, se a popularidade da banda se dá, de fato, pelo nome Legião, ou apenas por seu grandioso ex vocalista;

. Vi mais cedo, no facebook, uma análise interessante acerca do Festival, denominando o mesmo como Festa Ploc (referência a uma goma de mascar da década de 1980) por trazer em sua grade de atrações os dinossauros do pop rock brasileiro como Nando Reis, Biquini Cavadão, Capital Inicial, Paula Toler, Lulu Santos. Nomes que pouco produzem coisas novas e se agarram aos sucessos de vinte, trinta anos atrás. Com a Legião Urbana não é diferente. O grupo não apresentou absolutamente nada novo em termos de letra e melodia. Contudo, inegavelmente, foi um dos shows mais esperados do Festival. Acredito eu que isso se deu por uma complexa e profundíssima palavra chamada simbologia;

Finalizo essa matéria me certificando de que o que realmente ficou do show do Legião Urbana no Festival de Inverno Bahia foi a constatação de que Renato vive. Vive, inclusive, mais do que o próprio nome de sua banda. Impossível discordar de que ele foi um dos caras grandiosos na construção da cultura musical e poética brasileira. Sua morte não foi impeditivo para que a sua “figura” continuasse crescendo e se expandindo através de si mesmo, bem como de outros tantos artistas, bandas, grupos.

Renato Russo deixou de ser gente para virar personagem. Personagem vivo, fértil que caminha de maneira ininterrupta pela poesia terrestre e celestial. Desconfio exatamente agora que talvez, bem talvez, ele e Major Tom tenham se tornado um mesmo ser, calcado em sedução, vitalidade e mistério. Um mesmo ser com nomes diferentes, mas que, na noite de domingo, estiveram onipresentes do Fib mostrando partirem de uma mesma força, de uma mesma substancia que dificilmente poderia ser traduzida, mas que, sem sobra de duvidas, perpassa pelos infindos questionamentos do motivo, causa, circunstancia da possibilidade da transcendência existencial.



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