Por Mariana Kaoos

Meus pais estão envelhecendo. Não digo isso como algo ruim, afinal é o caminho natural e inevitável da existência humana. Meu pai já não realiza os campeonatos de surf como fazia antigamente e minha mãe já não tem a mesma disposição de alimentar a vida social que tinha. Atualmente, para meu pai seu maior prazer são suas profundas e intensas leituras. Foulcaut, Baktin, teorias mil sobre a produção de notícias. Minha mãe, por sua vez, adquiriu uma simplicidade e leveza sem tamanho. Ela gosta de experimentar novas receitas na cozinha e cuidar, com extrema devoção, de minha avó e de embrulhar a coberta até a cabeça quando se deita. Ambos dormem cedo e acordam mais cedo ainda. Ambos se chamam de apelidos carinhosos e engraçados. E ambos, apesar de reclamarem das minhas falhas a todo instante, possuem um amor e uma admiração sem limites por mim.
Tivemos fases difíceis no nosso relacionamento como toda família tem. No entanto, hoje, ainda que de forma velada, existe um respeito e uma compreensão mútua sobre os defeitos e qualidades de nós três. Aos vinte e seis anos de idade me vejo cada vez mais parecida com meus pais. Em valores, em posturas, até mesmo em chatices. Gosto de beijar cangotes alheios, perco a paciência para pessoas efusivas e criei um mundo meu, introspectivo, por vezes até mesmo autista, como meus pais também criaram. Só escuto Tom Jobim para dormir (assim como meu pai) e estou viciada em programas de receitas culinárias (assim como minha mãe). Quando olho para eles, me reconheço e me sinto feliz. Acredito que eles também.

Foi exatamente nessas questões e outras mil que comecei a pensar quando ouvi, na noite de ontem, 14, Ítalo Silva interpretando Como Nossos Pais, no Café Society. Junto com Euri Meira e outros músicos convidados para o projeto, Ítalo apresentou no espaço mais uma edição do Belchior Elétrico. E aqui não preciso nem relatar o saldo final da noite, porque já é de se imaginar: Apaixonante, intenso, febril.
O projeto Belchior Elétrico tem sido uma das melhores coisas que vem sendo apresentada em Vitória da Conquista nos últimos tempos. Primeiro pelo repertório riquíssimo em qualidade e segundo pelo absoluto profissionalismo e respeito que os músicos têm como o público. Diferente das outras edições, na noite de ontem não houve atraso e nem defeito algum. Às 21horas e 20 minutos, todos subiram ao palco e deram inicio ao show que dessa vez contou com mais uma participação especial: Alexandrina Santana. E, fazendo uma breve e precisa descrição, tudo começou mais ou menos assim…

Quando chegamos no Café ele já estava com 90% das mesas ocupadas. O público, distinto, parecia estar curioso para assistir à apresentação da noite. Muitos casais tomando vinho, bem como muitos grupos (acredito que de amigos) compartilhando cerveja e os petiscos da noite. No palco, além dos já habituais instrumentos havia diversos aviões, uns de papel e outros em brinquedo, e a capa de um disco de Belchior. Na capa a foto era em preto e branco e ele estava sentado, segurando um charuto na mão.
Euri, Ítalo e os demais músicos estavam com roupas formais, muito requintados. Detalhe especial vai para Euri que, apesar da calça de linho e da blusa de botão com o colete, calçava um all star cinza com cadarços vermelhos. Achei esse detalhe um tanto quanto encantador. Me lembrou ao próprio Belchior, sempre autêntico, irônico e contestador das regras de conduta moral. Quando deram início ao Belchior Elétrico, todos agradeceram a Otavio (dono do Café Society) pela oportunidade de estarem ali e mandaram ver. Todo Sujo de Batom, Medo de Avião, Mucuripe, Hora do Almoço, Alucinação e Paralelas foram algumas das músicas cantadas. Muita gente entoou os versos em uníssono. Outros tantos pareciam estar conhecendo pela primeira vez a obra de Belchior e demonstravam alegria, com expressões de surpresa e contentamento.
E aqui, depois de citar todas as já esperadas informações, talvez você me questione: Porra Mariana, já é a segunda vez que você cobre o Belchior Elétrico, sem contar as chamadas e notícias que você posta no Tome Nota toda semana. Você não se cansa não? E eu, feliz da vida, digo com toda precisão que não. Assim como Heráclito de Éfeso afirmou acerca do rio (que, embora seja sempre o mesmo, nunca é o mesmo) lá na Grécia Antiga, agora é a minha vez de dizer que cada edição do Belchior é totalmente diferente e melhor do que a outra.
Nessa última, por exemplo, os meninos estavam com uma pegada musical ainda mais voltada para os Beatles. Também pudera, os garotos de Liverpool eram uma das maiores influencias de Belchior. E Belchior por sua vez a minha. Autor que remonta uma obra da década de 1970, cujo significado se renova sempre na realidade do dia a dia. Apesar de conhecer a sua obra de cabo a rabo, toda vez que a escuto, é uma nova reflexão acerca de algo que me toca. E ontem, ao ver Ítalo, de forma esplendorosa, cantar Como Nossos Pais pude compreender que, embora os responsáveis por me dar a ideia de uma nova consciência e juventude estivessem em casa dormindo, guardados por Deus, eu, em pleno Café Society, ainda era a mesma e vivia tal qual os meus próprios pais. Meu coração sorriu por desvendar essa constatação.