Cultura conquistense: Ciclanos de Tais no Teatro Carlos Jehovah

´tex encomendas

Por Mariana Kaoos

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Eu estava na porta do Teatro Carlos Jehovah esperando o táxi chegar. Já eram 19 horas e a banda The Outsiders tinha marcado justamente esse horário para começar a se apresentar na Feira das Flores, lá na Pracinha do Gil. Seria a segunda pauta da noite e o proposto era que ainda houvesse mais duas. Isso foi no sábado, dia 7 de novembro.

O clima estava agradável. Nem muito calor, nem muito frio. Enquanto o táxi não chegava, acendi um cigarro e comecei a conversar com minha fotógrafa, Maieh Sousa. Aí de repente, não mais que de repente, começamos a ouvir uma batida de arrocha, daquelas um pouco mais animadas. Mais ou menos assim: tum rum rum tum tum tiz tum tum tum. O som vinha de dentro do teatro. Atentas ao que surgiria com o continuar da melodia, a surpresa foi arrebatadora: o ritmo escolhido embalou nada mais nada menos que uma versão de Freguês da Meia Noite, do rapper paulistano Criolo.

A primeira vez que Freguês da Meia Noite apareceu foi no disco Nó Na Orelha, de Criolo, em 2011. Uma versão bolero. Na sequência e um pouco mais adiante no tempo, foi a vez de Ney Matogrosso regravar a canção. Ela surge de maneira ímpar, numa versão meio seresta meio bolero, no seu disco Atento Aos Sinais, de 2013.

Sua narrativa se passa em primeira pessoa. O autor personagem da história descreve uma experiência em relação ao universo das drogas num fragmento de espaço e tempo. É forte. É bonito. É real. A versão de Criolo e a versão de Ney são profundas e impactantes. Mas nem de longe tão impactantes quanto a versão que ouvi no Teatro Carlos Jehovah.

E o inventor dessa versão arrocha, o criador e a criatura é Fillipe Sampaio. E Fillipe é de Jequié, mas mora e canta em Vitória da Conquista há mais de dez anos. E Fillipe é compositor, interprete e músico como poucos daqui o são. E Fillipe tem um intenso dom de pegar inúmeras canções de outros cantores já consagrados e repaginá-las, trazê-las para si, trazê-las para nós.

Porque quando eu digo nós me refiro à sensação de pertencimento, reconhecimento. Ao ouvir Freguês da Meia Noite em arrocha, ao dança-la no estilo “180 – 180 – 360”, comecei a compreendê-la melhor. Ainda que a história da canção seja ambientada no Largo do Arouche, bairro tradicional da grande São Paulo, comecei a enxergar nela a realidade daqui. O frio de Vitória da Conquista, que também é um açoite. As diversas “confeiteiras” com seus doces que surgem, causando tentação, no escuro das madrugadas. Enfim. Fillipe fez com que não só o meu imaginário, mas a realidade de Vitória da Conquista estivessem presentes em toda a letra de Freguês da Meia Noite. E isso é incrível. Isso é incrível porque a função da música não é apenas embalar momentos, e sim ensinar, apontar, questionar, provocar o ouvinte. E, uma vez tendo conseguido fazer isso, esse mesmo ouvinte vai olhar para a música não como um repertorio sonoro, mas mais ainda como fonte de referências pessoais.

Behind the wall…

Contextualizando um pouco, segue aqui um breve relato que antecede a versão arrocha de Freguês da Meia Noite: Fillipe Sampaio está com um projeto musical intitulado Primitivo. A sua primeira apresentação seria no dia 7 de novembro. Contudo, por problemas de produção, ele decidiu adiar um pouco sua estreia. Como a data já estava reservada em seu nome, ele aproveitou para fazer um ensaio aberto de outro projeto seu, denominado Ciclanos de Tais. Além de Fillipe, os percussionistas Davi Prates e Rafael Gomes integram os Ciclanos. No sábado em questão, dois músicos foram convidados para tocar com eles: André Tatu e Davi Brandão.

A entrada custava dez reais inteira e cinco reais meia. O Teatro não lotou, porém, os que estiveram presentes demonstraram encanto e admiração pelo show. Palmas calorosas surgiam a cada fim de música e gritos de satisfação a cada início delas. Fillipe montou um repertório extremamente híbrido. Apresentou canções autorais suas e de filhos da terra, como algumas da cantora e atriz Ana Barroso. Propôs um carnaval ijexá com Adar Não Choveu e A Luz de Tieta. E presentou a plateia com novos arranjos para antigos sucessos.

Amor Meu Grande Amor, de Frejat, ganhou uma versão belíssima e intimista. Nego Dito, de Itamar Assumpção, acordes embevecidos de realidade concreta. Trocando em Miúdos, de Chico Buarque de Holanda, virou funk. Um escândalo de bom. Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda e Mc Catra perderam feio para o funk de Fillipe.

E dos músicos, bom, dos músicos não há muito o que falar, a não ser que são completos e totalmente comprometidos com o trabalho. Davi Brandão parecia sentir tão profundamente cada acorde do baixo que se remexia, se contorcia por inteiro fazendo expressões faciais puras e profundas. Na outra ponta do teatro, Davi Prates olhava para os instrumentos de maneira febril, apaixonada. O tamborim, a conga e os efeitos pareciam mais seus filhos pequenos, tamanho amor ele tinha ao toca-los.

Rafael completamente concentrado. Concentrado e tranquilo. Como se o prato e o Cajon fossem uma espécie de extensão do seu próprio corpo, já que a cumplicidade ocorreu num nível absoluto. E André, recém chegado, possuía agilidade e respeito com todos os outros músicos. Ele pegou na hora grande parte das canções e não errou em absolutamente nada.

Talvez, a única crítica possível de se fazer ao show é que o seu formato caberia melhor em um ambiente aberto, onde as pessoas pudessem dançar. O Carlos Jehovah é um teatro de Arena, escuro e pequeno. A plateia se limita a sentar nas arquibancadas, sem muito espaço, e aí não há estímulo para cair na dança. Sendo assim, se o Ciclano de Tais se apresentassem em um espaço aberto, certamente que a interação com o público seria ainda maior e mais intensa. Vamos torcer para que, em breve, isso possa acontecer.



Cultura, Vitória da Conquista

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