Esperando Clarice nº 2

Por Mariana Kaoos

  • Esta é uma obra de ficção

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A turva constatação de que, ainda que tenham vindo dia e noite, noite e dia e o reflexo das cores assumira distintas tonalidades ao longo da passagem do tempo, desse tempo, ela ainda continuava esperando Clarice.

Desejava a sua vinda com tanta avidez que, vez ou outra, lhe faltava sabor na comida. Sim, porque após o primeiro bolo solado, outros muitos vieram. Bolo de macarujá, bolo de capim santo, bolo formigueiro, bolo de aipim. Ela tomou cursos e mais cursos, pesquisou receitas diferentes em livros da biblioteca municipal, percorreu diversos estabelecimentos à procura de especiarias e praticou como pode.

Ao fim, os bolos chegavam sempre ao mesmo resultado: Alguns estavam solados, outros doces demais, ou salgados, insossos no geral. Os outros que provavam faziam sempre cara feia, mas tentavam disfarçar. Ela não. Ela permanecia com a mesma expressão imóvel de sempre. Era como se não pudesse sorrir ou chorar ou sentir raiva ou o que fosse. Sua expressão era de espera. Distraída na passagem das horas, tremelicando a perna direita e com olhos arregalados de quem quer o próximo momento, ela vivia na constância do que estava por vir.

E Clarice não aparecia. Aliás, depois de algum tempo, ela passou a questionar-se se Clarice de fato existia. Se era real. Humana, carne e osso. Boca, cabelos, orelhas e pernas. Alta ou baixa. Magra ou gorda. Ela se perguntava se Clarice possuía aquela voz rouca de divas como Marina Lima e Angela Rorô ou se ela falava baixo por natureza. Sabe, bem daquelas pessoas que falam tão baixo que sempre tem que repetir o que acabaram de dizer. Clarice se perdia no universo das palavras? Ou era pessoa do presente contínuo, imersa nos afazeres do cotidiano?

Ela não sabia, ela não sabia. Porque dizem alguns teóricos que as nossas memórias, as nossas lembranças não são verdade, fato passado ocorrido com precisão em um fragmento de instante. Em verdade eles nos dizem que as nossas memórias, as nossas lembranças são irreais: elas são alteradas de acordo com a nossa romantização existencial e se perpetuam através dos sentimentos de acalanto que criamos para justificar aquela velha e complexa indagação do “quem sou eu?”.

Sendo assim, ela não podia afirmar com veemência que um dia conheceu e conviveu com Clarice. Clarice podia ser bicho, planta, ar ou ate mesmo razão inconsciente para que ela continuasse seguindo, estrada adentro, com um proposito de vida. Talvez, bem talvez, a tarefa de Clarice fosse mesmo nunca chegar. Nunca chegar para que ela continuasse seguindo. Entende o que quero dizer?

A profusão do ideal Clarice não poderia tornar-se concreto. É na concretude que as coisas se estratificam e depois de desmantelam. Se diluem. Tornam-se ásperas. Estranhas. Alheias. E somem. São absorvidas pela indústria, pelo Estado, pelos outros e somem. Deixam-se seduzir pela superficialidade, pela embriagues dos desejos e somem. Tornam-se bem comum e somem. Depois de usadas, reutilizadas, lambuzadas, perdem o valor, deixam se der interessantes e somem. Tornam-se nada.

E ela não queria. Ela não queria que, em algum momento, Clarice pudesse se tornar o nada. Então esse era o seu segredo. Clarice era o seu segredo. Ninguém sabia, ninguém sequer suspeitava de que aquele jeito alheio, aquele olhar perdido na imensidão do invisível, aquela pressa do amanhã não era algo seu, de sua essência, e sim provocado pelo pulsar que Clarice causava dentro de si. Guardado em seu corpo a sete chaves ela evitava até mesmo pensar em Clarice, pois não queria correr o risco dos anjos ouvirem e roubarem, levarem ela para o infinito celestial. De qualquer forma, Clarice não era algo que necessitasse ser pensado. Clarice era essência. Essência e sentimento.

E ocorria exatamente dessa maneira: primeiro o êxtase com a possibilidade da sua vinda. O mundo ganhava cores vibrantes e o azul era presença fixa no céu. A vinda de Clarice lhe provocava suspiros, sorrisos e vibração. Ela ficava efusiva, acreditava, amava, era presença marcante, inebriante no mundo. Depois a ânsia. O tédio. O atraso. Clarice parecia vir, mas sempre se atrasava. E ela ficava impaciente, ansiosa, roendo unhas, fumando sem parar. Consultava o relógio a todo o momento e desmarcava compromissos para olhar a porta. Desligava tudo o que pudesse fazer barulho dentro de casa para que seus ouvidos ficassem atentos, caso a campainha tocasse.

Por fim vinha a angustia. A constatação de que Clarice não iria aparecer. O desespero. O vazio. A falta de luz dentro de si. Tristeza. Solidão. Melancolia. Desconfiança. Decepção. Decepção porque ela havia preparado tudo. Aprendera mais uma receita de bolo e arrumara a mesa com um vaso de flores no meio. Lírios. Da última vez foram lírios. E, já estava tudo preparado. O momento era aquele. Sua vida estava aberta para que Clarice pudesse entrar. Mas Clarice não entrava. Nem ontem. Nem hoje. Nem amanhã. Nem nunca.

Após se despedaçar em espera, ela fechava o ciclo. Decidia esquecer Clarice por completo e concentrar-se no palpável, no seguro. Aí dormia, com certa dificuldade, mas, ainda assim, dormia. Comia também. Priorizava a saúde e tornava-se um ela mais atenciosa a tudo que a circundava. Isso durava algum tempo. Algum tempo de dia e noite e luz e cor. Até que, como quem se esconde atrás da porta para assustar alguém, a espera de Clarice renascia dentro de si. Ela sonhava. Acreditava que dessa vez tudo seria diferente. Entregando-se no ímpeto impulso da utopia, era hora de comprar novas flores. Dessa vez, tinha optado por esperar Clarice com orquídeas e um bolo de limão.

 

 

 



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