O DOIS DE JULHO E A IMPORTÂNCIA DA BAHIA NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL


Por José Raimundo Fontes*

A história nunca será uma carroça abandonada, embora também não   seja um   carro alegre cheio de um povo contente, como poetizaram Pablo Milanés e Chico Buarque. Sempre será o palco onde se encenam dramas e comédias, farsas e tragédias, choros e risos, sonhos e pesadelos, conflitos e harmonias, estagnação e progresso, envolvendo indivíduos e coletividades, e povos e nações.

Seja como lembranças pessoais, seja como   memória coletiva ou, ainda, enquanto narrativa sistematizada, com fundamentos metodológicos e pretensamente explicativos, a história está intrinsecamente ligada ao registro das condições e ações humanas no tempo. Nesse sentido, todo passado pode ser história. Contudo, há feitos, acontecimentos e episódios que se sobrelevam e marcam épocas e momentos no transcurso das sociedades. Todo tempo presente carrega em suas entranhas componentes pretéritos. O passado nunca morre, pois é preservado, socialmente, tanto nas instituições-memória quanto nas comemorações, nas efemérides, nas celebrações e rituais coletivos, nas expressões artístico-culturais e, principalmente, nas narrativas historiográficas.

Faço esse introito para destacar a importância do 2 de julho, ou seja, da Bahia, no processo da crise da dominação portuguesa no Brasil na qual os baianos tiveram um papel decisivo para construir a estratégia política e militar que tornou possível a declaração e consolidação da nossa independência.

Afinal, em 7 de setembro deste ano comemoraremos o Bicentenário do Brasil-Nação, mas foi no 2 de julho de 1823 que a independência foi garantida, com a expulsão das tropas militares portuguesas, que, depois do grito do Ypiranga, tentaram manter a Bahia e as províncias do nordeste e do norte sob o domínio de Portugal. Aliás, a bem da verdade histórica, não é exagero se afirmar, sem ufanismo, que o papel da província da Bahia foi essencial na trama dos acontecimentos da conjuntura de 1820-1823, contribuindo para o desfecho do 7 de setembro e o arremate final do dois de julho. Por isso, como nos ensinam os grandes mestres da historiografia baiana, o mais correto é dizer, quando fizermos referência ao dois de julho, Independência do Brasil na Bahia. De fato, só se pode entender o processo histórico que levou ao desfecho da nossa autonomia politica se consideramos o papel decisivo desempenhado pelos baianos nos principais episódios que marcaram esse conturbado período, que se inicia com a chamada Revolução Liberal do Porto, em 24 de agosto de 1820, e transcorre até a derrota das tropas comandadas pelo Brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, em 2 de julho de 1823.

Nessa conjuntura marcada por dúvidas e contradições, alguns acontecimentos cruciais são protagonizados pelos agentes políticos baianos, cabendo destaque para o apoio à revolução do Porto, em sua primeira fase, quando se pretendia elaborar uma constituição e instaurar uma Monarquia Liberal Constitucional em Portugal.

Posteriormente, todavia, uma fração da elite local se rebelou contra as decisões das Cortes de manter o Brasil subordinado à Lisboa e exigiu o retorno de D João VI, o que aconteceu em 26 de abril de 1821. Este grupo viria a se consolidar enquanto uma força política ativa e avançou na defesa da tese da independência política do Brasil, propondo a ruptura com a metrópole e que se gestasse uma plena autonomia, inclusive com a constituição de forças militares próprias e garantia de liberdade de comércio. Esse antagonismo local expressava, na verdade, as duas grandes hipóteses na resolução do conflito em jogo em âmbito nacional: seguir as orientações das Cortes ou romper com elas, sinalizando para a organização de um poder nacional autônomo. Assim, durante o resto do ano de 1821 e no transcurso de 1822, todas as posições tomadas por Portugal no sentido de manutenção do controle da colônia brasileira foram rechaçadas pelos baianos, que passaram a defender a separação do Brasil da Coroa portuguesa, advogando a entronização do filho de D João VI como monarca brasileiro.

É nesse contexto que se insere um conjunto de decisões, atitudes e acontecimentos, tendo como palco a cidade de Salvador e o recôncavo, que resultaram no simbólico “grito de independência ou morte”,  do 7 de setembro, entre os quais merecem referência “ o dia do fico ”, em Janeiro de 1822; a recusa dos militares baianos  em aceitar o comando  do  português Inácio Luís Madeira de Melo, nomeado em fevereiro   para o cargo de Governador das Armas, substituindo o brasileiro  Manuel Pedro de Freitas Guimarães; o ativismo  político das  Vilas do Recôncavo, entre os meses de junho e julho,  para  a aclamação de D. Pedro I como Príncipe Regente; e a mobilização militar de tropas e da população para resistir às  várias tentativas do exército português   de ocupar postos estratégicos no recôncavo, especialmente a ilha de Itaparica, núcleos produtivos, comerciais e vias terrestres, para viabilizar o abastecimento de Salvador.

O gesto político de D. Pedro em não obedecer às orientações das Cortes aguçou ainda mais as tensões na Bahia. Mesmo antes do episódio do Ipiranga, o staff de D. Pedro sabia que o controle da Província Baiana, por parte Portugal, era essencial para uma tentativa de resistir à separação e, em caso de sua ocorrência, para uma tática de manter as regiões do Nordeste e Norte sob o controle português. Por isso a decisão de reforçar militarmente a Bahia, com o envio de tropas, já em julho de 1822, comandadas pelo general francês Pedro Labatut, que viria a ser, a partir daí, um dos principais líderes do exército brasileiro. Por seu lado, as forças portuguesas continuaram tentando penetrar no Recôncavo e se apossar de postos no litoral sul, sem sucesso.

Após o grito do Ypiranga, ao longo dos fins de 1822 e primeiro semestre de 1823, o cenário dos conflitos foi se reduzindo ao espaço da Baia de Todos os Santos, tendo como epicentros a Ilha de Itaparica e a cidade de Salvador, especialmente em função do reforço de 10 navios da marinha portuguesa, com soldados, armas e munições. Mesmo assim, Madeira de Melo não conseguiu romper o cerco e ficou isolado, após a batalha de Pirajá, ocorrida em 9 de novembro de 1822, que fechava a porta de saída pelo Norte. Nos meses seguintes, as operações militares portuguesas ficaram restritas à cidade de Salvador, a localidades próximas do litoral interior e à Ilha de Itaparica, onde se verificaram escaramuças em janeiro de 1823.

Percebendo que o ponto forte das forças portuguesas estava reduzido ao domínio marítimo, os estrategistas de D. Pedro, além de reforçarem as tropas terrestres, contrataram o mercenário inglês   Almirante Lord Cochrane, que assumiu o comando  da Marinha do Brasil e, junto com Labatut e, posteriormente, com o Coronel Joaquim José de Lima,  nomeado comandante-chefe do Exército no lugar de Labatut,  organizaram, entre abril e meados de junho, o cerco de Salvador por terra e por mar.

Enquanto os grupos dirigentes de brasileiros se unificavam e se fortaleciam, no mês de junho, com a posse da Junta de Governo da Província da Bahia, na cidade de Cachoeira, que havia sido nomeada por D. Pedro I ainda em 5 de dezembro de 1822, o comando português se fragilizava política e militarmente. Sem condições de suprimento das tropas e de abastecimento da cidade, Madeira de Melo arquitetou o plano de partida e de rendição. Finalmente, no dia 30 de junho de 1823 a cúpula portuguesa, esgotada, começou a negociar os termos para se retirar do Brasil. Mesmo não se rendendo oficialmente, na madrugada de 2 de julho os navios portugueses deixaram Salvador.
Não restam dúvidas de que a Bahia exerceu um papel decisivo para o desfecho da nossa independência, constituindo-se o 2 de julho no marco simbólico desse processo. Na proximidade do bicentenário desses acontecimentos é importante, desde já, despertar e mobilizar instituições públicas e a sociedade civil para que no próximo ano tenhamos uma grande celebração do Bicentenário da data magna dos baianos.

Para nós, será uma oportunidade de revisitar o nosso passado, de examinar, difundir e propagar, de forma ampla e sistemática, os grandes feitos da nossa gente, como também de corrigir e revisar as distorções de interpretações desse passado que ocultam a participação efetiva dos diversos sujeitos sociais, sobretudo os grupos subalternizados, naquele momento, na dinâmica da libertação da nossa pátria do jugo colonialista.

Embora já se reconheça o papel relevante da Bahia na luta pela nossa independência, ainda há muito a ser divulgado, pesquisado e reelaborado. A história nunca termina, nunca acaba. O passado é rico e teimoso. Está sempre vivo e em reelaboração pelos homens do presente. E, quando ressuscitado, não é necessariamente um fantasma e pode estar prenhe do novo. A destruição de estátuas, em vários países do mundo, de personagens que antes foram glorificados, ilustra bem a dialética passado-presente. Os baianos sabem disso, tanto pela forma como festejam o Dois de Julho quanto pela ressignificação do passado de dor da escravidão, elaborando e reelaborando crenças, rituais, cantos, ritmos, gestos e cores, enfim, em modos de vida e ideais libertários.

*José Raimundo Fontes, Prof. Universitário, deputado estadual (PT), ex-prefeito de Vitoria da Conquista, Doutor em História Econômica (USP), Mestre em Ciências Sociais (UFBA), Graduado em História e Pedagogia.



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