Os mistérios dolorosos e gozosos de Jorge Luis Melquisedeque. Uma memória elegíaca

Hoje, 4 de novembro de 2021, faz 20 anos da morte de Jorge Luis Melquisedeque_

Por Elton Becker S. Salgado

O domingo 04 de novembro de 2001 foi um dia de sol e muito calor em Vitória da Conquista. Mas, à noite, os raios-fúlgidos do sol (conforme o nosso hino), cederiam a ares mais sombrosos. Afinal, segundo reportagens da época, Jorge Luis Melquisedeque da Silva (1952-2001) teria saído de casa para um passeio e nunca seria visto com vida novamente.

Seu corpo, queimado, haveria de ser localizado dali a três dias na região da Lagoa de José Luís, distante 8 km da sede de Vitória da Conquista. Antes, porém, seu carro seria encontrado na segunda-feira à tarde, dia 5, pela Polícia Militar próximo ao Bairro da Urbis VI e ali havia manchas de sangue e perfurações à bala.

Pesquisando em periódicos daquele momento, vemos que o assassinato de Jorge somava-se a outros crimes de morte em Vitória da Conquista sem solução e cujas investigações estavam paralisadas na Polícia Civil; a exemplo do marinheiro mercante Geraldo Filadelfo Araújo, encontrado morto numa delegacia local. E as reportagens mostram ainda que o assassínio de Jorge passou (sem resolução) por três delegados diferentes até, pelo menos, maio do ano seguinte.

Observe que em sua edição de 03/05/2002, a Revista Conquista News publicou, sob o título de “Trunfo da Impunidade”, uma matéria de capa que continha uma entrevista com o titular da Delegacia de Homicídios, Darci Cardoso, e, internamente, a reportagem trazia a seguinte chamada: “Muitos crimes, poucas resoluções. Vitória da Conquista tem alta taxa de homicídios e latrocínios. A maioria dos crimes está sem solução”.

No texto, o Coordenador Regional de Polícia Civil, Robson Marocci, se mostra irritado com a expressão, ou talvez com a pergunta do jornalista, sobre aquela falta de solvência dos casos e afirma que não há crimes insolúveis. Porém, assevera: “há crimes de difícil solução ou crime em investigação”. O delegado garante que todos os processos de investigação estariam em andamento.

Contudo, mais adiante na mesma publicação, lemos o delegado informar que um homem e uma mulher, os quais não tiveram os nomes divulgados para não trazer ”prejuízos a investigação” (palavras de Marocci), foram presos temporariamente para averiguações. No mesmo parágrafo dessa reportagem da Conquista News, o delegado dirá também que as investigações que estavam a cargo de um primeiro comissário (Luiz Henrique) serão remetidas para um terceiro (Juliana Flores).

E finaliza Robson Marocci: “Não sei se as investigações serão encerradas ou se ela [a delegada Juliana Flores] prosseguirá com os trabalhos. Retorno a Salvador e vamos reabrir [as] investigações em torno dos assassinatos de Jorge e de outras pessoas”.

O redator, infelizmente não identificado, conclui dizendo que depois do encerramento dessa entrevista e, claro até o fechamento daquela edição, o inquérito de Jorge estava “completamente parado”. Não sabemos o lapso de tempo entre a gravação da entrevista até a chegada daquela publicação às bancas. Todavia, o que sabemos é que, passados 20 anos daquele assassinato, o mistério é o mesmo; sim, é tudo muito misterioso, é estranho e imponderável.

E mais que isso, para mim é elegíaco porque é triste, é lamentoso.

É tudo tão inexplicável quanto era naquele sombrio 6 de novembro de 2001, uma terça-feira, quando o professor Waldenor Alves Pereira Filho, então reitor da Uesb, fez o reconhecimento do corpo. No dia anterior, ante a má-vontade das autoridades locais, o reitor havia buscado socorro à delegada Kátia Alves, secretária de segurança pública do Estado à época.

Sim, foi tudo tão estranho quanto a ausência de Jorge a uma reunião marcada para a manhã daquela segunda-feira, 5 de novembro de 2001, com representantes da Universidade e da TV Sudoeste em que a instituição iria negociar uma permuta de equipamentos com a emissora.

Criterioso como era com os seus horários, todos surpreenderam-se com a falta de Jorge. Era descortês até e, longe disto, Jorge era um homem cioso das suas obrigações e, sobretudo, da agenda. Mas, tristemente, outras situações extraordinárias se seguiriam depois daquela falta e os por quês daquela ausência se tornariam os por quês daquele absurdo: “por qual razão” e “por qual motivo” ele foi morto?

**Música e ”Comunhão”**. Jorge faz parte de um capítulo importante da história cultural de Vitória da Conquista. Ele integrou no movimento Emergente (fins de 1979 – 1982), com Luciano Popó, Antonio Calmon, Jean Cláudio, Joan Barreto, Zélio Costa e Paulo Cesar Melo; e, obviamente, os atuais cursos de Bacharelado em Comunicação Social (com habilitação em Jornalismo) e em Cinema e Audiovisual da Uesb devem muitíssimo a Jorge Luis Melquisedeque — e, façamos justiça, a Gileno Paiva também.

Jorge era escritor, roteirista, publicitário, videomaker, cinéfilo, agitador cultural e, na década de 1970, integrou o movimento literário “Geração Mimeógrafo” que divulgava a “poesia marginal” em Vitória da Conquista. Foi ele quem, ao lado de Esmon Primo, criou o programa Janela Indiscreta, em 1992.

Além disso, segundo informações de servidores que trabalharam ao seu lado na Universidade, há mais de mil matérias escritas, roteirizavas e produzidas por Jorge e que representam a memória-viva da Uesb e, obviamente, do audiovisual de nossa cidade.

Jorge ainda tem uma participação importante na divulgação e interesse pela obra de Glauber Rocha e na luta pela permanência das salas de cinema de rua em Vitória da Conquista, mormente o Cine Madrigal. E o que seriam das locações do filme “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, se não houvesse a figura de Jorge?

Porém, para mim e para efeito desta memória, me interessa (por hora) o Jorge leitor e cantor. Pois, diferentemente de outras pessoas mais próximas ao cinema, a minha memória de/com Jorge Luis Melquisedeque é literária e musical.

Creio que o nome dele começa a surgir em minha vida pelo início dos anos 1990, pelas vozes dos amigos Elton Quadros e Bite, e vai se tornando mais presente, sobretudo, depois do segundo semestre de 1997 quando, ao visitar minha Amiga Maria Onorina na sala da ProVídeo/Uesb (Produtora de Vídeo da Universidade Estadual Sudoeste da Bahia), a presença de Jorge — no cantar de Caetano Veloso — começa transbordar pelas portas e pelas janelas e paralisar meu momento em que tudo começa.

Primeiro, Jorge Melquisedeque era leitor voraz de ”Don” Jorge Luís Borges. E se o poeta argentino se dedicara a compor enigmas para o leitor decifrar e a engendrar charadas de fino gosto literário com soluções muitíssimo inesperadas, o mesmo podemos dizer de Melquisedeque. Naquilo que chamamos hoje de audiovisual, ele inventou e invectivou uma forma de narrar (gozosa e dolorosa — talvez saborosa?) e a ela submeteu seu próprio convívio e, quiçá, sua própria vida.

Aliás, sua vida e sua obra nos surpreendem tanto quanto nos cativam. E permanece ainda que quisessem, deliberadamente, apagá-la. Onde está o material criado por Jorge sobre a homenagem feita pela Universidade ao escritor Jorge Amado, quando a biblioteca do campus de Jequié passa a denominar-se Biblioteca Setorial Jorge Amado, no início da década de 1980?

Foi Borges quem nos disse que a História (à semelhança de certo diretor de cinema, procede por imagens descontínuas) e, não raro, se apresenta como a história de uma taberna carregada de perigos no meio do deserto, assim sendo, é preciso tirar a obra de Jorge das circunstâncias que prenunciam seu desaparecimento.

Mas, voltando a minha memória. Creio que por ser um grande leitor, Jorge se interessou muitíssimo quando, em agosto de 1997 numas das minhas visitas a ProVídeo, lhe mostrei a edição do estojo de Rubem Fonseca em que trazia os livros “Histórias de Amor” e ”Do Meio do Mundo Prostituto só Amores Guardei ao Meu Charuto”. Ele vibrou intensamente quando lhe disse que o título desse último livro havia sido tirado do “Poema do Frade” (de 1890), de Álvares de Azevedo.

E, como tinha boa memória, citei os excertos VIII, IX e X do Canto Terceiro poema de Azevedo para Jorge:

“Lancei-me ao desviver: gastei inteira
Na insânia das paixões a minha vida.
Qual da escuma o fervor na cachoeira
Quebrei os sonhos meus n’alma descrida.
E do meio do mundo prostituto
Só amores guardei ao meu charuto!

E que viva o fumar que preludia
As visões da cabeça perfumada!
E que viva o charuto regalia!
Viva a trêmula nuvem azulada,
Onde s’embala a virgem vaporosa!
Viva a fumaça lânguida e cheirosa!

Cante o bardo febril e macilento
Hinos de sangue ao poviléu corrupto,
Embriague-se na dor do pensamento,
Cubra a fronte de pó e traje luto:
Que eu minha harpa votei ao esquecimento
Só peço inspirações ao meu charuto!”.

E, talvez, porque o cinema nos ensinou a seguir as rápidas sequências de imagens visuais, Jorge ligeiramente se irrompeu do silêncio e da atenção que me escutava e disse: “Isso é chapliniano! É chapliniano”… e repetiu essa frase algumas vezes. E eu, confesso, não entendi nada. Mas pensei que deveria ser alguma coisa graciosa e inteligente. Ponto! Fiquei feliz.

Mais tarde, em 2000, enquanto trabalhávamos em uma certa campanha eleitoral de um candidato a prefeitura de Vitória da Conquista e da qual tenho alguma vergonha de ter estado lá, tive a oportunidade de lhe mostrar o CD “Simply Baroque”, do violoncelista Yo-yo Ma com o maestro Ton Koopman regendo a Amsterdam Baroque Orchestra.

Me lembro bem que lhe falei que Yo-yo Ma tocava um violoncelo barroco (equipado com cordas de intestinos e sem espigão, o que fazia com que o artista tivesse que segurar o instrumento entre suas pernas). E, por aquela hora, lhe mostrei as fotos do CD e ele viu Yo-yo Ma com o violoncelo entre as pernas e Jorge repetiu novamente: “Isso é chapliniano! É chapliniano”…

E creio que foi por esse tempo que ele me falou com grande entusiasmo do disco “Suite for Flute and Jazz Piano“, do pianista e compositor de jazz Claude Bowling com o flautista clássico Jean-Pierre Rampal. Tomei-lhe o CD emprestado e nunca mais tive a oportunidade de devolver o que, até hoje, ao ouví-lo me causa uma lírica tristeza.

E, finalmente, falemos do Jorge cantor. Recentemente, por mercê de Karina Melki e Valéria Viana Sousa, eu consegui ouvir outra vez o CD “Jorge… Memória não Morrerá” feito a partir de uma gravação caseira e distribuído entre amigos logo após a morte dele em 2001. Nesse trabalho há 13 gravações em que Jorge Melquisedeque interpreta composições de Djavan; Milton Nascimento, com Caetano Veloso, Chico Buarque, Ricardo Silveira e Fernando Brant; Gilberto Gil e Violeta Parra.

Aqui, eu queria me atentar à gravação de ”Comunhão” (terceira faixa). Entre acordes dedilhados e batidas no violão com andamento rápido, Jorge consegue imprimir um tom único, melancólico e lânguido àquela composição de Milton Nascimento e Fernando Brant. E, lembrando os versos de Ribeiro Couto, por uns instantes estamos tristes e não sabemos a razão. Daí, surge a vontade de espairecer a melancolia e ouvir o mar.

E é curioso isso porque, a exemplo da música, não estamos falando de tristeza porque a casa de Jorge, mesmo que entrasse solidão; ao contrário, sua casa, sua vida, refletia comunhão. Comunhão com o infinito, comunhão perfeita das suas almas; afinal, Jorge — tal como o gadareno dos evangelhos sinóticos — era uma legião, i. e., infantaria e cavalaria, ajuntamento e multidão. A voz de Funes, como a de Melquisedeque, de dentro da escuridão, continua nos falando.

Sabiamente, Julio Cortázar nos diz que o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. Assim, fotografia e conto seriam ordens fechadas enquanto que filmes e romances seriam, segundo aquela fórmula de Cortázar, ordens abertas porque nas primeiras (fotografia e conto) há uma “limitação prévia” imposta tanto pelo narrador quanto pelo tema.

Mas, o que dizer de Jorge que, alheio a qualquer vontade, a qualquer escolha ou limite — seguindo a canção “Amanhã”, de Caetano Veloso —, era de imperar e, apesar de hoje e de tudo, era de vicejar mesmo em ordens (ditas) fechadas?

Formulo e, sinceramente, não sei responder essa questão. Mais eis que os mistérios dolorosos e gozosos da vida, obra e mito de Jorge, suas fortunas não gozadas, os espelhos em que não se mirou, os tigres que não enfrentou e os labirintos nos quais nunca se (re)encontrou, me dizem que ele era PLENO, cheio e repleto e vivia na mais louca alegria. E nem mais um mistério…

Esse era para ser um texto de historiador. Mas, eu lhes digo: Esmon Primo, Beto Veroneze, Edmilson Santana, Ana Isabel, Milene Gusmão, Renato Fernandes, Gutemberg Macedo Júnior e tantos outros que viveram aqueles dias sombrios, eu não consegui. O máximo que consigo agora é me lembrar do mestre historiador Marc Bloch que também foi morto pela intolerância dos homens. Como ele só posso fazer uma nota humilde porque somente, sobre isso, posso apenas “solicitar a indulgência, diria assumir a culpa, se isso não fosse assumir, mais do que seria legítimo, as culpas do destino” e, obviamente, da emoção.

Mas, assim como já se disse do mestre Bloch, podeis dizer que ele, Jorge, deixou uma obra e um legado os quais desdenham daqueles que deram fim a sua vida e, evidentemente, desdenham daqueles que se cumpliciaram dos sequazes assassinos com seu silêncio (torpe) e sua inércia (vergonhosa) porque, assim, se tornaram partícipes deste crime; afinal de contas dele tomaram parte como negligentes.

Salve, Jorge! Viva, Jorge!… memória não morrerá. Oxalá, que esse texto chegue ao professor Luiz Otávio de Magalhães, reitor da Uesb, para que promova ações e projetos para preservação da arte de Jorge — feitos dele, memória da Uesb e, por conseguinte, da cultura audiovisual de Vitória da Conquista.

Finalmente, a palavra da poesia. Na roda do mundo, lá vai o menino-cantor Jorge Melquisedeque. O mundo é imenso e ele e os homens são tão sozinhos. Mas, na roda da vida, o menino Jorge começa a cantar cantigas quase-de-rodas que afastam estranhas coisas escuras. Tristemente, ao seu lado, alguns cantam cantigas de escárnio e maldizer. Não importa, o menino Jorge segue suas cantigas de amor e de amigo.

Cantigas que fazem a vida mais doce, o peso das sombras mais brando e a fronte dos homens menos pesada, ainda que não percebam. Como o poeta, ele sabe, que alguns ouvem e julgam com a alma, outros ouvem e julgam com a alma que eles não tem.

O menino sabe que há os que mudam a cabeça de lado como os ventos e que há queira permanecer na dureza dos rochedos. No meio de todos eles, o menino ouve às vezes calado, mas atento e comovido e risonho. A alegria de alguns lhe basta e o menino Jorge sabe que sem as cantigas os homens ficam mais torpes, mais ocos e endoidecem de vez.

Lá vai o Jorge como a um trem de Ferreira Gullar e de Villa-Lobos, lá vai ciranda e destino pro dia novo encontrar, rodando e cantando, rodando que o mundo é mais doce, cantando que o mundo é mais manso, mansinho.

Epitáfio:
“O canto desse menino
talvez tenha sido em vão.
Mas ele fez o que pôde.
Fez sobretudo o que sempre
lhe mandava o coração.”
(— Thiago de Melo)

É, Jorge, faz escuro e é triste, mas escuto seu canto… E, conquanto a (sua) vida seja mistério doloroso e gozoso, a (sua) memória não morrerá! Sim, faz escuro, mas você ainda canta… Obrigado por sua música!



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