SER CIRA

Por Elen Vila Nova

Peço licença aqui, ao amigo leitor desta coluna, para publicar um texto essencialmente pessoal. Espero, contudo, que possa servir de reflexão para tantas pessoas que, assim como eu, tenham – ou ainda têm – testemunhado o sofrimento cada vez mais comum de pacientes afetados por doenças que degeneram o corpo, a memória, a consciência e a percepção do próprio ser e do mundo.

Esta semana a família Vila Nova se despediu de uma de suas figuras mais importantes e sustentadoras do nosso equilíbrio e força.

A perda física foi esta semana, mas a perda lenta e gradativa da presença desta figura em nossas vidas diárias já havia começado há muitos anos.

Obrigada, tia Cira. Obrigada por ter sido e ainda ser nossa Cira. Meu amor, e minha despedida: Era uma mulher forte. Daquelas que intitulamos matriarca. Na
ausência da nossa matriarca- mor, vó Lola, era ela quem ditava as normas, as ordens, as maneiras. Causava respeito, talvez até medo.

Mas também era a rainha da alegria. Dançava espalhafatosamente, contava piadas e entrava nos lugares de um jeito só dela. No lugar do simples, nada marcante, e nada pessoal “Olá”, cumprimentava a todos, em alto e bom som, com seu: “Oloooô! Cheguei!”. Era mesmo criativa. Intensa.

Não conversava. Não se abria. Não deixava a gente contar nada que fosse um pouco mais íntimo. Passava por cima da fala, interrompia. Dizia que tinha que ir embora, que o “chefe” – numa referência ao tão amado marido – a estava esperando. E ia mesmo embora. Parecia fria. Parecia não se importar.

Mentira dela. No seu olhar, a gente conseguia a verdade. No fundo, ela sabia de tudo. Tudo mesmo. E do seu jeitinho – seja com um pedaço de bolo, uma festinha, um dinheirinho colocado escondido no nosso bolso, um presentinho qualquer-, ela dizia:

“Eu te entendo. Eu estou aqui. E eu te amo.”
Subia e descia as ladeiras que separavam a nossa casa da dela a todo momento. Duas, três vezes por dia, acreditem! Que força! Uma força que só as pernas mais bonitas e comentadíssimas de sua juventude em Alagoinhas poderiam suportar.

Um dia ela me contou seu segredo: ao acordar, ainda deitada, todos os dias, fazia não sei quantas bicicletas no ar. Tentei copiar para ter as mesmas pernas, claro. A mesma energia. Mas nunca, nem de longe, tive ou terei sua força.

E lá vinha ela… Subia a ladeira, dizia “Oloooô” e já sabíamos: nas mãos, um pacotinho de pão quente. A água era imediatamente colocada no fogo. Era fato: ia ter café fresquinho.

Quando ela não subia, eu descia. Ia para sua casa em busca do café forte com leite Ninho que só ela sabia fazer. Em busca do abraço. Em busca de ver o jornal da noite do lado dela e de tio Luís. Em busca das histórias. Em busca do amor de primavera bem disfarçado de inverno que ela nos oferecia.

Quando fique doente, inconsciente de mim, de todos… que curioso, exatamente como ela ficaria uns dez anos depois, ela cuidou de mim… Nas poucas lembranças que tenho do hospital, me marcou a sua voz suave e forte ao mesmo tempo: “Calma Ieiie (meu apelido na família)… Sua mãe já vem”.

E um ano depois, ainda me recuperando, no meu aniversário de 19 anos, ela trouxe um bolo de chocolate com cobertura branca e preta da sorveteria Frio Gostoso. E fez aquela alegria. Mesmo triste, chorando, ela me fez rir. Se não fosse ela, não haveria festa naquele ano difícil para meus pais.
Como ela me faz falta! Muita mesmo. Tive um pouco de sorte de morar longe e não ter presenciado constantemente o seu desaparecimento lento e sofrido.
Desculpe, tia Cira. Desculpe se fiz falta. Mas você já me fazia muita falta. Com seus olhos opacos e distantes, já não era nossa Cira. A tia Cira. A Avó Cira, a Irmã Cira, a Esposa Cira, a Mãe Cira.
Mas a família era a mesma. Com marido e filhos dedicados. E irmãs – em especial minha mãe (Jelza) e tia Gisa. Todos estes
empenharam forças, emoções, recursos, paciência, angústias… para que ela tivesse conforto e paz.
Tive uma filha. Ela não a conheceu. E isso lamento tanto, tanto.
Tia Cira, ser é muito mais que existir.
E você continua sendo, para sempre, nossa Cira.
Que no Céu, você sorria para Deus e diga, alegremente:
Olooooô!!! Cheguei!
Te amo.



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