Turnê na vida: Uma olhada na vida que se revela por trás do picadeiro do circo, por Elen Vila Nova

Por Elen Vila Nova

O circo continua de pé. De lona erguida. De picadeiro iluminado. Mas a bilheteria vende os últimos ingressos desta temporada em Vitória da Conquista. Depois de sete semanas em cartaz na cidade, os artistas, técnicos e administradores do Circo Irmãos Power se preparam para correr novamente a estrada.  Se no picadeiro o show precisa continuar, atrás da lona o cenário já é de partida. Os cerca de 80 profissionais do circo já estão malas prontas: incluindo as famílias dos dez irmãos Power e seus pais, dona Ray e senhor Didi Power.

Mudar de casa, ou melhor, mudar a casa de lugar, é uma missão repetida dezenas de vezes por ano. Desta vez, o destino é o município de Pedra Azul, em Minas Gerais. “São mais ou menos 30 cidades visitadas pelo circo anualmente. Às vezes mais, às vezes menos”, afirma Júnior Power, que ao lado do irmão Didi (mesmo nome do pai), toma a frente da administração do circo.

Algumas das 15 carretas já estão na estrada, outras estão sendo preparadas. Também já começam a partir algumas das 10 casas motorizadas, os chamados motorhomes, onde moram cada uma das 10 famílias que integram o circo.

Neste período de mudança, os registros de imagem por parte da imprensa não são permitidos.  Michely Power, a mais nova das três irmãs e a oitava na linhagem Irmãos Power, esclarece: “O preconceito é muito grande com os artistas de circo. Acham que vivemos de qualquer jeito. E não é verdade!”.

E não é mesmo. A casa motorizada de Michely é de dar inveja a muita gente. Sala de TV, cozinha completa (fogão, geladeira, forno microondas…), dois quartos (um deles com beliche para um possível irmão para o filho mais novo), e banheiro amplo com – acreditem! – uma bela banheira! O conforto dos motorhomes realmente impressiona.

Mas mesmo em casas que andam, e aparecem como mágica de circo em outro lugar, as caixas de mudança também são necessárias. Os pertences, objetos pessoais, panelas… tudo precisa ser guardado. A intenção é evitar o chacoalhar nas estradas brasileiras que geralmente não apresentam boas condições. O lar só voltará a ser doce na próxima parada, quando tudo for novamente montado.

E foi sempre assim, nesta vida itinerante, de pessoas que se mudam sem se mudar, que viajam estando sempre em casa, que nasceu e cresceu a família Power.

A vida para além do picadeiro

Para além do espetáculo no picadeiro, as vidas discretas atrás da lona também encantam. Vida de artistas que escolheram não estar, mas viver em turnê.

A história da família e do circo começa no encontro entre Bahia e Sergipe. O ano é o de 1967. O circo de tourada de Sr. Didi Power, nascido em Salvador, chega à cidade de dona Ray Power: Tobias Barreto, no interior de Sergipe. Ela, filha de militar “brabo”, estava sentada numa calçada quando ele passou em direção à igreja e a impressionou.

Os olhares se cruzaram. Ele parou para conversar com ela que, com medo do pai, não respondeu. Ele sussurrou um local para o encontro. Ela foi. “Era uma terça feira de 1967. Fugi com ele para a cidade de Entre Rios, na Bahia, e voltamos para casar no sábado”, conta nostálgica.

A partir daí, ela seguiu com Sr. Didi. E construíram esta linda história de arte e de amor. União, força e fé, como diz o slogan que acompanha o grito de guerra dos “Irmãoosss Powwerr!”.

Bahia, Minas Gerais, Amazonas, Ceará são os estados que acolheram os nascimentos dos irmãos Power. “Um dos meninos nasceu na terra do Padre Cícero”, conta dona Ray, se referindo ao município de Juazeiro do Norte, no interior do Ceará. “Chegamos de manhã com o circo, e pari à tarde”. Já os netos do casal têm registros de nascimentos em locais ainda mais diversificados: Paraná, Bahia, Rio Grande do Norte, Goiás, Paraíba e Minas Gerais.

Mikhael é o mais novo Power. Tem três anos. Nasceu em João Pessoa, na Paraíba.  Ele já atua nos espetáculos. Ao lado do primo Gabriel, de oito anos, é um dos palhaços mirins que acompanham o tio Leandro Power, o palhaço Jujubinha, em um dos números mais aguardados do show.

No dia da reportagem, o menininho não estava para papo. E também não quis se apresentar. Tava com sono. “Colinho!”, pedia. Tudo bem. A vida no circo para eles é uma diversão. É prazer. Definitivamente, não é trabalho. Converso com o mais velho, Gabriel que, apressado, se arruma para entrar em cena. Com os enormes sapatos de palhaço nos pés, tímido, o menino diz que adora a vida no circo. Que pergunta boba a minha! Que criança não gostaria de viver no circo?

“Aqui é muito legal. É divertido”, diz ele.  Quem te ensinou a ser palhaço?, pergunto. “Meu tio”. Por que você gosta de ser palhaço? “Porque eu também dou muita risada”. Simples assim!

A vida parece ser diferente. Mas é igual. Gabriel frequenta a escola como qualquer criança. Ou melhor, frequenta escolas. A cada nova cidade, um novo local de aprendizado.

As mudanças são garantidas pela Lei Federal nº 6.533, que regulamenta a profissão de artista, assegurando a transferência da matrícula e consequente vaga nas escolas locais de 1º e 2º Graus, mediante apresentação de certificado da escola de origem.

Aqui, em Vitória da conquista, Gabriel foi matriculado em uma escola particular da região. “A preocupação com uma boa educação é grande em nossa família”, explica Michely.

Ela também garante que as crianças do circojá estão acostumadas à mudança de escolas.

A respeito de como os pequenos conseguem acompanhar o ritmo de cada colégio em que chegam, Michely pontua que o bom senso das instituições de ensino é fundamental. E ela se refere não só à transmissão dos conteúdos das disciplinas como também a aspectos financeiros como a compra de fardamento e de material escolar. E lembra que o esforço das crianças precisa ser grande: “Eles chegam e tem que estudar muito para acompanhar a nova turma. Se é época de provas, precisam estudar para fazer os exames”, diz.

Para a família, a educação sempre foi tão importante quanto o trabalho no picadeiro. Os dez irmãos Power sempre estudaram enquanto acompanhavam o circo. E com sucesso. Michely, que é malabarista e trapezista, e Leandro, o já mencionado palhaço Jujubinha, fizeram faculdade de Direito. “Quando entramos na faculdade, ficou mais difícil acompanhar o circo. Nos finais de semana, quando possível, a gente viajava para onde o circo estava. E mudamos de faculdade duas vezes para ficarmos mais próximos do picadeiro”, diz Michely.

Na disputa eleitoral, o acesso gratuito ao circo para a população foi um dos motes escolhidos por ambos. O circo acabou sofrendo as consequências do entrevero. Um incêndio criminoso destruiu tudo. E os artistas viram o fogo consumir o palco de seus sonhos.

Sr. Didi batalhou e reconstruiu a grande casa da família Power. Do zero. Processou os responsáveis. Mas até hoje não houve sentença. A história marcou a menina, que escolheu o curso de Direito para tentar ajudar o pai a fazer justiça.

Fé no picadeiro

A família Power é católica. E fervorosa. As manhãs de domingo são sempre dedicadas à missa, onde quer que estejam. Em Vitória da Conquista assistiram aos cultos na Catedral Nossa Senhora das Vitórias. Na igreja do Senhor do Bonfim, um dos maiores símbolos católicos do país, Michely se casou.

A festa, é claro, foi no circo que estava montado na Avenida Paralela, em Salvador. Como qualquer noiva, ela estava nas alturas. Mas no caso de uma artista circense, a expressão ganha força, e ela dançou a valsa nupcial de lá de cima… do trapézio.   O felizardo foi um primo. É… pelo menos o coração da malabarista não precisou fazer nenhuma manobra complicada para encontrar o amor.

Mas a história de Michely não é comum no circo. Assim como dona Ray e Sr. Didi, geralmente os amores são encontrados nas passagens dos artistas pelas cidades. Da plateia nasce o encanto pelo trapezista, malabarista, contorcionista, locutor… E nos bastidores nasce o amor. Na sequencia a partida atrás do circo. E as família construídas atrás da lona.

Apesar de artistas, e extremamente extrovertidos no palco, na vida íntima, os irmãos Power são tímidos e reservados

E o que se passa fora do picadeiro, é difícil acessar. Não foi simples conseguir informações para construir esta reportagem. Apesar de artistas, e extremamente extrovertidos no palco, na vida íntima, os irmãos Power são tímidos e reservados. Educados, me receberam com muita simpatia. Mas pouco abriram das vidas pessoais. Iniciei as entrevistas já no período de desmontagem do circo e, como já citei, não me deixaram fotografar. Consideram que já estava tudo desmontado, e bagunçado.

Como jornalista e, especialmente, fã da arte circense, não entendo a restrição. Acho tudo lindo e extremamente organizado nos bastidores da vida do circo.

Acho encantador o camarim cheio de panos amontoados, as roupas caindo das araras, as maquiagens espalhadas, algumas já no fim, precisando daquele dedinho que faz as vezes de pincel, e raspa até a ultima gota o colorido dos cosméticos. É a bagunça normal dos bastidores, bagunça que esconde tudo que, quase que inexplicavelmente, vira brilho, encanto, vira show. A bagunça que está a serviço da beleza do que se vê no espetáculo.

Mas para os artistas, o circo é muito mais que um palco. É a própria casa. E em casa bagunçada não há quem queira receber visitas, não é verdade?

Uma vida marcada pelas mudanças de cidade, pelos desafios da educação, pelas amizades deixadas para trás, por amores muitas vezes não concretizados.  Uma vida cheia de paixão. De amor. De união.

“União, força e fé. Irmãooss Poweeer!!!”

Esta reportagem foi escrita a convite do site WWW.leiamais.com.br e publicada em 03/11/2018. Link: https://leiamais.ba/2018/11/03/uma-olhada-na-vida-que-se-revela- por-tras-do-picadeiro-no-circo



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