Transexuais conquistenses contam as suas histórias de vida e como vencem o preconceito

Por John Ferraz e Tamires Tavares – Blog Foca na Ativa

Viver significa nascer, crescer, mudar, mas também morrer, esquecer e recomeçar. E tudo isso só é possível quando se tem coragem. Como já dizia Guimarães Rosa, “o que a vida quer da gente é coragem”. Ela é a alavanca que nos move para frente. Contaremos aqui a história de duas pessoas diferentes que compartilham algo em comum: a coragem de recomeçar. Elas não tiveram escolha, mas receberam uma missão: nascer de novo sem sequer ter a oportunidade de desfrutar do descanso final. Mas seria possível morrer para viver?

Iesa Santiago descobriu essa missão ainda muito cedo. Com três anos de idade, ela já sabia que alguma coisa estava errada e que algo nela não se encaixava. Ela havia nascido em um corpo que não era dela, um corpo que não correspondia à sua mente, mas ainda era muito nova para compreender.

FOTO 1-1

Ainda na infância, Ian Santiago já sabia que não pertencia ao próprio corpo.
(Foto: arquivo pessoal de Ian Santiago)

Na escola, era um problema. Iesa queria estar entre os meninos e fazer “coisas de meninos”, afinal, em seu pensamento, ela não era uma garota, mas seus amigos não entendiam, nem ela se entendia. Sentia-se num mar agitado, sem saber nadar. Apesar de tudo, sempre deixou claro que o seu pior pesadelo era ser menina.  “Todos eles sabiam que eu sempre quis ter nascido homem. Então eu não tinha como esconder, era um pivete no corpo de uma menina e aquilo era bizarro”. Judith Butler, em seu livro Problemas de Gênero, tenta mostrar que o gênero não é uma determinação biológica, isto é, não nasce com a pessoa, mas é uma construção social. Para a autora, as figuras femininas e masculinas são discursos construídos e atribuídos ao sexo com o qual a pessoa nasceu.

Em 2011, com 21 anos, Iesa veio para Vitória da Conquista-Ba onde conheceu uma pessoa que marcou o seu destino: uma mulher trans. Mesmo sem identificá-la, Iesa demonstra gratidão ao falar sobre essa amizade, que a ajudou no processo de se descobrir e entender quem realmente era: um homem transexual. “Com base na luta dela eu comecei a tomar coragem para a minha transição e acabou que eu ‘saí do armário’ e ‘chutei a porta’, disse Iesa. O sentimento vivido por Iesa de não pertencer ao seu corpo é denominado transexualidade, que acontece quando uma pessoa possui uma identidade de gênero diferente do sexo que nasceu. Mas o que seria identidade de gênero? A identidade de gênero é uma experiência íntima e individual da pessoa com o seu gênero, seja ele masculino, feminino ou alguma outra combinação dos dois. É a percepção que o sujeito tem de si. O gênero pode ou não coincidir com o sexo do nascimento. No caso de Iesa, o seu sexo não correspondia a sua identidade.

Foi então, em 2011, que Iesa soube, pela primeira vez, da existência de intervenções hormonais que permitiriam adequar seu corpo para que ele e sua cabeça funcionassem juntos. Era o início de um novo ciclo. Iesa começava a abandonar sua identidade feminina para dar vida a Ian, um jovem bonito, alegre e corajoso, que, aos poucos, foi descobrindo o seu caminho. Sua mãe, que sempre soube que tivera um filho, e não uma filha, reprimiu durante muito tempo o que sabia e Ian, ainda como Iesa, escondia o que sentia. Foram tempos difíceis para os dois, mas eles escolheram embarcar juntos nessa viagem com destino à tão esperada “paz” de ser o que se é.

A transição é um processo de transformação do corpo para que ele e a identidade de gênero possam caminhar juntos. E acontece por meio de tratamentos hormonais e também da transgenitalização, isto é, da cirurgia de mudança de sexo. No entanto, uma pessoa transexual não é obrigada a manifestar o desejo de se submeter à procedimentos médicos-cirúrgicos para assumir a sua identidade. Decidido passar pela transição, Ian conta que a principal dificuldade que teve para começar o tratamento hormonal foi encontrar os meios necessários para o procedimento: “como aqui na cidade era o primeiro caso foi complicado, eu passei por ‘maus bocados’. Eu fiquei de janeiro a agosto de 2014 catando médicos e não achava”. O tratamento hormonal era praticamente desconhecido em Vitória da Conquista, por isso a maioria dos médicos procurados por Ian negava a possibilidade de fazer a transição e outros preferiam não assumir a responsabilidade.

Graças à ajuda de sua mãe, Ian conheceu o endocrinologista que até hoje acompanha o seu caso. Entusiasmado, ele fala sobre a disposição do médico quando aceitou iniciar a terapia hormonal: “o endocrinologista me passou todos os exames e falou ‘olha, a gente só vai começar depois que você tiver o laudo da psicóloga’, mas ele deixou eu ir fazendo algumas coisas antes, como conversar sobre os hormônios e iniciar os exames. Ele estudou muito, não tinha noção nenhuma quando eu cheguei lá, mas depois veio com todas as informações que eu precisava, debateu tudo comigo e escolhemos os hormônios juntos”.

Ian nunca tinha se sentido tão vivo e tão disposto a seguir em frente. Começava ali um novo ciclo, uma nova história. “Quando eu comecei o tratamento foi uma loucura tentar me acostumar com as mudanças de humor, de tudo. Mas é uma mudança interessante porque tudo o que você era – e o que você não podia ser, mas era também – extravasa de uma vez”.

FOTO 2-1

Ian Santiago no início do processo hormonal com testosterona.
(Foto: arquivo pessoal de Ian Santiago)

Existe muito preconceito resultante da falta de informação sobre a transexualidade. O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo. Somente em 2016, foram 127 mortos no país, um a cada três dias, segundo informações do Grupo Gay da Bahia. A expectativa de vida das pessoas trans é de apenas 35 anos, menos da metade da média nacional, que é de 75 anos. Neste cenário, assumir quem se é de verdade é abraçar um mundo de desafios.

Viver a transição é estar disposto a construir novos caminhos, mas antes disso é também estar aberto a um processo de desconstrução, uma vez que não são apenas mudanças físicas. Todo início e fim de um ciclo trazem consigo mudanças de pensamentos, de sonhos e de perspectivas e isso, muitas vezes, pode ser doloroso. Ian estava iniciando esse novo processo quando conheceu Bruna Menezes, que assim como ele não se identificava com o corpo em que havia nascido. Bruna encontrou em Ian respostas para perguntas que há muito tempo a rodeava. Moradora de Itabuna-BA, mudou-se para Vitória da Conquista em 2014 para estudar. Começara então um novo ciclo. Era uma nova cidade. Era o início de sua vida acadêmica. Mas não foi só isso. Bruna estava dando os seus primeiros passos em direção a quem realmente era: um homem transexual.

Bruna nunca se sentiu confortável com seu corpo, sempre conviveu com a sensação de estar faltando algo. Na busca por sua identidade, sem sequer imaginar que havia nascido no corpo errado, acreditou que seu problema estava em não aceitar seus desejos por mulheres, então, se assumiu como lésbica. Mas logo soube que ainda não era isso, “eu sentia que havia uma coisa diferente”, afirma.

FOTO 4

Pedro Menezes antes de começar a transição aos 16 anos.
(Foto: arquivo pessoal de Pedro Menezes)

Com 18 anos, já morando em Vitória da Conquista, Bruna vivencia um processo de descoberta. Um processo de autoconhecimento. Tudo começou com algumas conversas com Ian, e três meses depois já havia a certeza: ela também era um homem trans. Foi tudo muito rápido. Bruna estava com pressa, afinal, havia passado muito tempo convivendo com dúvidas e estranhamentos. Adotou então um novo nome: Pedro. E decidiu que estava na hora de conversar com a sua família: “de cara, eu já sabia que eu ia me dar mal. Quando eu descobri que era isso, eu disse ‘eh, velho, tudo de novo agora, me assumi uma vez, sofri bastante, agora eu vou assumir uma coisa muito maior’”, conta Pedro. Como esperado, sua família, que não conhecida a transexualidade, reagiu negativamente e isso o afetou muito. “Foram seis meses de guerra, pararam de me mandar dinheiro. Eles tentaram me internar, porque acharam que eu estava louco, aí depois falaram para meus parentes que eu estava usando droga, preferiram falar que eu estava usando droga do que falar que eu era um homem trans que estava em transição”, relata. Apesar de assumir para a família e os amigos a sua transexualidade, Pedro só começou o tratamento hormonal cerca de sete meses depois de sua descoberta.

FOTO 5

19 anos, um mês antes de tomar o hormônio pela primeira vez.
(Foto: arquivo pessoal de Pedro Menezes)

A aceitação só vem a partir do conhecimento. Transexualidade ainda é um tabu no Brasil, um assunto a ser evitado, que rompe os valores familiares e religiosos estabelecidos cultural e socialmente. Mas não há como mascarar o que existe, o que é real. Ian e Pedro assumiram quem realmente são. Seguir um caminho desconhecido não é uma escolha fácil, requer principalmente coragem. Mas a possibilidade de poder ser o que se é os motiva a não desistir. As primeiras mudanças no corpo e na voz foram momentos que marcaram esse processo. “Eu fico me lembrando da sensação que era aquilo, eu me sentia o barbudo, aquilo era maravilhoso. A voz mudando, quando eu comparava um vídeo de antes e depois, eu falava, ‘nossa, mudei muito’. E você não percebe no dia a dia, mas essas comparações eu sempre fiz. Hoje em dia já não faz mais tanta diferença, mas era muita emoção”, diz Ian Santiago.

O abraço da família é substancial na construção da identidade. A família de Pedro, mesmo tendo reagido negativamente a sua transexualidade, hoje procura entender. Pedro deixa claro que eles não aceitam, mas entendem. Sua mãe, por exemplo, lhe estendeu a mão, mesmo com as memórias de Bruna batendo em sua porta. Ela se fez presente, construindo novas lembranças com o filho que ganhou. “Hoje ela me apresenta como filho dela, ela fala ‘era minha filha, agora é meu filho, ele é homem trans’”.

Apesar de tudo que passou, Pedro foi marcado por alguém tão próximo e especial, que o acolheu sem sequer questionar o porquê das transformações vividas por ele. Sua bisavó, de 98 anos. Entusiasmado e ansioso, ele conta que ela foi a única pessoa de sua família que o chamou de Pedro desde o primeiro dia em que soube: “no dia que eu contei, contei chorando porque eu gosto muito dela e eu achei que ela não iria compreender”, mas a surpresa veio logo depois. “Vó, meu nome agora é Pedro e eu quero que você me chame assim’ e ela respondeu ‘eu amei, era o nome do meu pai’”. Ao relembrar, Pedro transborda o ânimo que a compreensão de vida da sua avó trouxe para ele. O avô de Ian, de 95 anos, não é como a bisavó de Pedro. “Ele não entenderia, ele sempre deixou claro que essa coisa de homossexualidade e transexualidade é falta de paternidade. E como minha mãe é separada tudo dá motivo para ele voltar nisso, culpando o meu pai”, afirma Ian. Sem conseguir disfarçar o riso, Ian ainda conta que seus parentes paternos são os mais receosos à sua transição de gênero, “eles não me chamam por nome nenhum, usam adjetivos neutros também, você vê o esforço para não falar nada que termine em ‘a’ e ‘o’”.

“Ian” e “Pedro” são nomes sociais. Juridicamente, ambos ainda permanecem com os nomes de registro. Pedro está na fila para alterar o seu nome. Já Ian não quer mudar por agora, por questões burocráticas. Ele se sente confortável com o nome social. Quando perguntado a Pedro o porquê de ter escolhido esse nome, afirma que não houve um motivo especial. Ele recorda que quando não havia mais dúvidas sobre a sua transição, passou o dia todo, junto com uma amiga, pensando em um novo nome. Nesse mesmo dia, uma outra colega o chamou de “Pedro” e ele instantaneamente respondeu “oi”, no exato momento, soube que seria esse. Já Ian conta que a escolha do seu nome foi pelo mesmo motivo que sua mãe escolheu “Iesa”, seu nome de registro, era pequeno e começava com a inicial do nome dela, ele ainda acrescenta: “ela disse que foi uma boa escolha”.

Pedro, que é estudante de Jornalismo na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- Uesb, conta que na faculdade, graças a Ian, o seu nome social foi incluído nas listas no dia seguinte após o pedido de mudança. Ele ainda fala sobre a reação dos professores e amigos com a alteração do nome: “meus colegas, a maioria foram bem tranquilos, mas eu achei que melhorou depois que eu fiz um seminário na sala de aula sobre diversidade sexual, sobre tudo. Na verdade, dei uma aula de identidade de gênero, falei sobre respeito, falei sobre tudo e aí melhorou. Depois disso até quem ficava errando o meu nome e não voltava atrás, começou a se policiar, prestar mais atenção”. Pedro também conta que escutou de alguns professores comentários indesejáveis, como: “por que você mudou seu nome? É tão bonito”.

Homem ou mulher trans não são obrigados a se submeterem a cirurgias de mudança do sexo para que tenham os seus nomes alterados, porém sem ela o processo se torna ainda mais burocrático. Se feita a transgenitalização, a pessoa deve solicitar judicialmente a troca do nome. Caso a pessoa não tenha passado pelo processo cirúrgico, deve requerer por meio de um processo judicial a alteração, demostrando por meio de provas, como relatórios do acompanhamento psicológico, a sua condição de transexual. Pedro fala que por conta da burocracia ele ainda não conseguiu mudar o seu nome: “eu já abri o processo, só que o juiz daqui de Vitória da Conquista não está aceitando, aí estamos pensando em fazer um mutirão e ir pra São Paulo fazer lá porque é mais fácil”, afirma.

Ian fala sobre alguns episódios em que a sua transexualidade afetou diretamente o seu trabalho. Ligado à publicidade, ele conta que já trabalhou com diferentes públicos e que os pagamentos, normalmente, costumam ser um problema, pois seu nome feminino consta nas suas contas bancárias. “E aí eles depositam e vem questionar e quando eu tenho que explicar é um fuzuê. A maioria desses clientes, na verdade, eu já perdi por conta disso e eu nem sabia que podia ser algo que pudesse prejudicar. É uma coisa incrível, porque é só falta de informação”.

Atualmente, Ian está com 25 anos e Pedro com 21. Nenhum dos dois passou por processos cirúrgicos. Os seios são um incômodo para Ian e ele pretende fazer a cirurgia (mastectomia) para retirá-los. “Nunca me adaptei aos seios. Deveria ser uma escolha, ‘você quer nascer com seios ou sem seios?’”. Pedro também pretende fazer a operação. O empecilho na maioria dos casos é o financeiro. Os procedimentos cirúrgicos são muito caros e as filas do SUS (Sistema Único de Saúde) são longas. Por esse motivo, muitos transexuais recorrem aos tratamentos clandestinos, sem orientação médica alguma. “Você passa tanto tempo se sentindo mal com você, se olhando no espelho e falando ‘o que está faltando?’, que quando você descobre o que é, você quer mudar tudo de vez”, disse Pedro.

FOTO 3

Após dois anos e meio de tratamento hormonal, Ian Santiago deixa para trás os traços femininos.
(Foto: arquivo pessoal de Ian Santiago)

FOTO 6

Com 21 anos, Pedro Menezes também deixa os traços femininos para trás, após mais de um ano de tratamento hormonal.
(Foto: arquivo pessoal de Pedro Menezes)

O endocrinologista Jonathan Moura de Andrade, que acompanha cerca de 13 pacientes transexuais em Vitória da Conquista, incluindo Ian e Pedro, conta como é o processo para se iniciar um tratamento hormonal e quais são os riscos da automedicação. “O paciente chega para consulta e, geralmente, todos eles já vêm com o histórico de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico. Na primeira consulta ele vai me contar a história dele. A maioria dos que eu acompanho, tem bem sedimentado essa questão da não compatibilidade com o gênero. Isso é importante porque eu não dou diagnóstico”, afirma. Após o laudo psiquiátrico, o paciente pode começar os exames clínicos e posteriormente o tratamento hormonal. Jonathan conta que o ideal é que no primeiro ano da terapia o acompanhamento seja trimestral, porém ele destaca a dificuldade financeira dos pacientes, que, geralmente, são estudantes e não têm o suporte da família.

Sobre o perigo da automedicação, Jonathan diz: “a gente sabe que a terapia hormonal tem seus riscos. A terapia de transição para a masculinização tem uns riscos, a de feminilização, outros. E esses riscos vão depender do perfil do paciente, se ele tem hipertensão, diabetes, histórico pessoal e familiar de trombose, de AVC. Tudo isso a gente precisa avaliar antes do uso da medicação e os exames também. Se ele faz o uso da medicação sem ter os exames e o acompanhamento, ele está sob o risco de apresentar alguma alteração que pode causar sequelas graves, ou até mesmo a morte”.

A transição não é o único desafio a ser vivido por Ian e Pedro, ela é apenas o início dessa caminhada. O preconceito, uma antiga cicatriz da sociedade, também está entrelaçado nessa história. Ian e Pedro conhecem de perto a dor dessa marca. “A maior parte do preconceito nem é escancarado. É aquela coisa, em uma palavra, um olhar, isso incomoda, mas é uma coisa que a gente esquece no dia a dia”, disse Ian Santiago.

Ian sofreu transfobia de forma escancarada apenas uma vez. Aos gritos, em público, um homem gay afirmou que Ian era uma vergonha por não ter o órgão sexual masculino. “Eu fiquei indignado, me perguntando como uma pessoa me para numa festa para questionar o que eu tenho ou não tenho, o que seria bom para ele e não para mim. É realmente difícil de entender, então eu não fiquei muito chateado, eu só fiquei indignado por isso realmente ter acontecido e não foi cena de novela, não foi uma história de livro, aconteceu e eu fiquei ainda mais chocado por vir de um homem gay”.

Quando perguntado a Pedro sobre preconceito, ele diz: “diariamente. Todos os dias”. Na sua família ainda há resistência. Pedro conta que recentemente levou a sua namorada para conhecer o seu avô, que não hesitou em perguntar o porquê de Pedro não se vestir igual a ela. Em sua mente, Pedro e a namorada são um casal homossexual. Existe ainda hoje muita confusão entre orientação sexual e transexualidade. A orientação sexual diz respeito ao desejo, a atração emocional, afetiva ou sexual que uma pessoa tem por outra. A pessoa transexual, seja homem ou mulher, pode ter qualquer orientação sexual. Pedro é um homem trans bissexual.

Nesse novo caminho, a esperança é um dos primeiros sentimentos que brota, e o medo também. Eles estarão presentes ao longo da vida de Ian e Pedro. É como enxergar uma linha reta e saber que é por ali que se deve ir, mas sem conhecer os obstáculos que poderão aparecer. O que se foi fica apenas na memória. Para Pedro é um processo de autoaceitação. Aceitar o seu corpo, a sua identidade e a sua bissexualidade não foi uma tarefa fácil. Ele conta que viveu muitas situações constrangedoras por ter um corpo feminino, “eu já fui de andar com faixa e passar um calor infernal porque apertava muito. Hoje eu não uso nem sutiã porque eu não gosto de nada me prendendo”, afirma. Atualmente, Pedro pratica performance em rave e enxerga isso como uma forma de desconstrução. Olhar para o passado era muito difícil, mas foi ficando menos doloroso. “Eu não excluo quem eu era, mas quando eu vou pensar parece a vida de outra pessoa que eu acompanhei até certo ponto”, finaliza Pedro.

Conviver com as memórias é também uma forma de aprendizado. Não dá para apagá-las. Elas são parte essencial no processo de renascimento. Ian se orgulha em mostrar como era, expor o obstáculo da vida vencido. “Eu sou a primeira pessoa a chegar na casa da minha mãe e pegar os álbuns de fotografias e falar, ‘olha eu aqui’. Eu lembro da minha infância exatamente como foi, só que eu não lembro de mim como era antes, parece que sempre fui assim e me vejo pequeno menino e é uma coisa engraçada”, disse Ian.  

A morte nem sempre é física, nem sempre é ruim. Às vezes morrer é necessário, é preciso. É difícil definir o momento exato que a antiga vida de um transexual fica somente nas memórias. Isso pode ser um processo demorado, ou não. Ter coragem é fundamental nessa nova etapa. São muitos desafios a percorrer, afinal, morrer para viver não é uma missão simples. Pedro e Ian sabem bem o que é isso, embora pareçam muito entusiasmados com o futuro, com a nova vida que acabou de começar. Ian deseja ir além, ele conta que sonha em constituir uma família: “eu sou uma pessoa que desde pequeno, mesmo sendo trans, eu sempre quis casar, de entrar na igreja bonitinho com um smoking lindo. Meu sonho é casar, não precisa ser na igreja, mas eu sempre quis namorar, passar pelos estágios e casar”. Por enquanto que esse sonho não se realiza, Ian se contenta com a família que já formou: ele, a namorada e seus gatinhos, que como diz “dão muito trabalho”.



Conquista, Cultura, Destaques, Vitória da Conquista

Comentário(s)