Opinião: Sobre a utilização indevida e predatória do patrimônio histórico – A atualidade do passado e a necessidade de legitimação do presente

André Effgen[1]

No dia primeiro de abril do corrente ano a ascom da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista publicou uma nota no “Blog da Resenha Geral”  intitulada  “Gabinete itinerante promove resgate histórico e aproxima o governo da comunidade”.  A nota intenta laurear a inciativa do atual prefeito da cidade em simbolicamente deslocar seu gabinete para um evento privado tradicional da cidade, a Expoconquista que este ano chega a sua 51ª edição.

A publicação ainda afirma que o ambiente foi pensado também numa perspectiva de resgate da história política da cidade, por isso mesmo foram utilizados móveis que pertenceram ao ex-prefeito de Vitória da Conquista e ex-governador Luís Régis Pacheco Pereira, pertencentes ao acervo do Memorial Régis Pacheco. O que mais impressiona na leitura do texto são duas fotografias que o acompanham, em uma delas, o prefeito Herzem Gusmão Pereira aparece sentado no antigo conjunto mobiliário de escritório em uma foto solene e solitária, numa outra acompanhado do presidente da câmara municipal, Hermínio Oliveira, e dos vereadores Lúcia Rocha e Gilmar Ferraz.

Na sua tentativa desastrada de resgatar a história de Vitória da Conquista, seu atual prefeito acabou violando-a. É assombroso o descaso apresentado para com o mobiliário histórico tombado pelo município. Para início de conversa os tais móveis deveriam estar protegidos de deslocamentos que podem ser motivo danos irreparáveis nas estruturas dos mesmos. Nas grandes coleções dos maiores museus ao redor do mundo quando alguma peça é deslocada para exposição (e não para utilização) em outros locais, algo que é avaliado com muito cuidado, considerando o estado da peça e a necessidade efetiva de tal ação em contraposição com os riscos apresentados à integridade do objeto, toda um equipe de conservadores, museólogos e pessoas qualificadas para o transporte seguro entram em cena para garantir o mínimo de danos possíveis, não é possível conceber, dentro dos quadros da PMVC que este tipo de ação foi realizada.

Ao sentar-se na cadeira e utilizar a mesa, o prefeito cometeu uma transgressão sem precedentes a estes objetos que são de propriedade de toda a comunidade conquistense. Ao invés de zelar e preservar a memória e a história política da cidade o prefeito em pessoa contribuiu para deterioração das peças, que enquanto exemplares da cultura material são um retrato com uma infinidade de significados do tempo no qual foram concebidas, por quem e para quem o foram.  Assim como no processo de deslocamento dos objetos, o seu uso, a ação do peso do corpo, o contato dos fluidos corporais com os objetos são extremamente danosos para a preservação de peças históricas, além de ser de um mau gosto extremado. Tal ação é tão desrespeitosa como seria se o presidente da república mandasse buscar o trono de D. Pedro I, que está em exposição no Museu Nacional do Rio de Janeiro, e o trono de D. Pedro II, no Museu Imperial de Petrópolis, e resolvesse fazer um ensaio fotográfico sentado neles.

Conquista já teve grande parte da sua história devastada com os arroubos desenvolvimentistas do passado que colocaram abaixo vários edifícios históricos e sofreu com o descaso de um tempo onde seus políticos jamais tiveram a sensibilidade necessária para preservar sua memória. Apenas com o advento da Lei Municipal nº 707/93, respaldada nas legislações de nível estadual e federal que se iniciou, um certo cuidado para a preservação do pouco que restou da cultura material da nossa história. Em decorrência disso na gestão do prefeito José Raimundo Fontes, foi criado, numa parceria entre a Secretaria Municipal de Cultura e o Ministério da Cultura o Memorial Governador Régis Pacheco, local onde os móveis deveriam estar resguardados.

Mas adiante das questões de preservação e transgressões da atual PMVC, algo desponta na nota inicialmente citada, que aos olhos corridos passa de forma desatenta, mas que é preciso um olhar da semiótica para ser compreender.   Vejamos um trecho do texto da ASCOM: “O jardim ornamentado em estilo clássico divide lugar com uma mobília histórica: móveis centenários que pertenceram ao ex-prefeito e ex-governador na Bahia, Régis Pacheco. Os móveis fazem parte do acervo do Memorial Casa Governador Régis Pacheco e o Gabinete Itinerante quer promover o resgate da importante história política de Vitória da Conquista, na pessoa de um dos grandes e notáveis homens que ajudaram a construir a cidade. É neste ambiente inspirador, que o prefeito Herzem Gusmão recebe empresários, políticos, lideranças e pessoas da comunidade durante a Exposição.”

É bem claro que em uma síntese do texto e das imagens existe algo subjacente à mera boa vontade desastrosa. O prefeito agora parte em busca da autoafirmação e da legitimação entre os vultos dos grandes gestores do passado conquistense, claramente existe um ardoroso desejo de ser além de um mero quadro pendurado nas paredes do memorial. Além da usual verborragia empolada, agora também existe a “propaganda de estado”.

[1]  André Effgen é historiador e arqueólogo.  Membro do Neferhotep Project , projeto de preservação e escavação do complexo funerário do escriba Neferhotep (TT49) em Luxor, Egito.



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