Especial dia dos namorados: Fragmentos e sensações!

Por Mariana Kaoos

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O que é o amor se não fragmentos vividos no descuido do cotidiano? E o dia dos namorados? Pura invenção do capital? O amor foi apropriado pela indústria do consumo? Perdeu-se em si mesmo? Tornou-se propriedade privada? Como retomar, reinventar o amor na sua mais pura essência libertária e sólida? De onde tirar a coragem necessária de sair da superfície das paixões e mergulhar na mais intensa profundeza do amor? É possível ser inteiro a dois? Oculta-se ou escancara-se as fraquezas, os defeitos, os demônios? É mesmo necessário ter um dia específico para presentear a quem se ama? E o sentimento, se encontra explicito nos elos invisíveis ou na quantidade de selfies postados no universo virtual? O amor quer a reciprocidade do olhar de quem se ama ou o desejo e despeito do olhar alheio? Amar é eterno? Como traduzir um sentimento? Amor é sinônimo de felicidade? Amor é sexo? Amor é poesia? Amor é encontro?

Azul porque é cor e cor é fé, menina!

Pintora. Ou melhor falando, artista plástica renomada e reconhecida internacionalmente. Seu trabalho, uma espécie de art nouveau pós surrealista, encantava a todos os apreciadores das cores e formas que ele expunha.  Naquela noite, iria receber em casa uma jornalista muito conceituada, que escrevia criticas culturais para uma revista de arte. Não tinha compreendido ao certo o propósito da matéria. Pelo que a jornalista disse, era por conta do intenso azul encontrado em seus quadros e a representação da cor em meio à estrutura e significado da arte pós moderna. Bom, por conta do encontro, ela interrompera seu trabalho mais cedo e deu uma leve arrumada na casa. Depois tomou banho. Prendeu a franja do seu cabelo vermelho com um tic tac e calçou sua sapatilha japonesa, tamanho 41, nos pés. Coou um café e colocou uns salgadinhos num prato sobre a mesa. Às 20 horas, como marcado, a campainha tocou. Ajeitou o vestido no corpo e abriu a porta. Só fora perceber que seus braços estavam sujos de tinta, ao rodar a maçaneta. Era tarde demais para tentar limpar. Sorriu para a jornalista e a deixou entrar em seu universo. A jornalista tinha um ar meio desengonçado, bem como misterioso, o que acabara atraindo a artista plástica. Sentaram-se perto uma da outra. Papo vai, papo vem, o café foi substituído por um vinho chileno, da safra de 1949, de uva carmenére.  Chet Baker ecoava na vitrola. Foi mais ou menos por volta das 23 horas que ambas se dirigiram ao ateliê para observarem juntas as diversas tonalidades de azul. Embora a jornalista tivesse um jantar marcado com seu noivo, ela não queria sair dali. Os quadros, o som, o vinho, as cores, a artista plástica, era como se tudo naquele ambiente a hipnotizasse e a seduzisse. Era certo que ela tinha a capacidade de não deixar o seu envolvimento interferir na escrita da matéria, contudo, naquele instante preciso, a jornalista estava inteira e entregue, como há muito não se sentia. Não se sabe se por conta do vinho, do som ou da subjetividade de ambas. O certo é que ao olhar para toda aquela tinta azul as duas entraram em sintonia e, como se fosse um gesto marcado de tão espontâneo, começaram a se pintar. Primeiro as mãos, depois o pescoço, rosto, nuca. A jornalista foi despindo a pintora e, no momento derradeiro, surpreendeu-se com uma grande revelação: ela era uma mulher trans. Uma mulher trans de curvas torneadas, seios rijos e pequenos e um órgão masculino no meio da pernas. Excitada com o que via, a jornalista também se despiu. Foi só depois que as duas estavam completamente pintadas com varias tonalidades de azul que finalmente veio o amor. O sexo, a brasa, a fogueira, os corpos, os gemidos, o suor, o gozo, a sede, o sono, o sonho, a cor. A jornalista decidira nada contar ao seu noivo sobre a noite anterior. Dois meses depois ela descobriu que estava grávida da artista plástica. Seu filho, um menino muito saudável e esperto, foi batizado como Blue.

No escurinho do cinema, chupando drops de anis:

 

https://www.youtube.com/watch?v=2q6QdMpSRPI

Eram dois. Dois que, naquele mês de abril, mais queriam tornar-se um só. Gabriel tinha idade já avançada. João também. Seguiram suas vidas em trilhas distintas até que, por pura surpresa do destino, desaguaram num mesmo caminho.  Se conheceram numa cafeteria da cidade. Trocavam olhares, sorrisos, até mesmo pedidos iguais ao atendente do local. Um dia, decidido a tomar uma atitude, Gabriel, num ímpeto lascivo, sentou-se na mesa de João.  A conversa, inicialmente, foi em torno de um assunto em comum: o exótico e intenso sabor do café. Depois ela se desenrolou e, quando ambos perceberam, já era fim de tarde. Despedindo-se um do outro, João convidou Gabriel para um encontro. Nada demais, apenas um filme, com pipoca e milk shake, na sessão das dez. Gabriel topou. Dois dias depois, ambos estavam ansiosos pelo que viria a acontecer. João trocou de roupa mais de cinco vezes, passou perfume em todo o corpo e escovou bastante seus dentes. Em toda a sua vida, sempre fora muito elogiado pela sua arcada dentária. Naquele dia do encontro, queria poder exibi-la da melhor maneira. Já Gabriel, problemático com nomenclaturas, cogitou a possibilidade de desmarcar o encontro. Ele não dialogava bem com essas situações em que existe uma expectativa preestabelecida. Nunca sabia como agir. Contudo, depois de muito pensar, decidiu encarar de frente, entrou com tudo no carro e foi buscar João em casa. Chegaram ao cinema e, entre um filme de terror e outro de aventura, optaram por assistir Mogli, o Menino Lobo.  Pegaram um grande maltine no Bob’s e uma pipoca, daquelas enormes, para dividirem durante a sessão. Ela estava lotada. João e Gabriel sentaram-se no canto da ultima fileira da sala. O filme começou. João tinha as mãos suadas. Gabriel evitava comer a pipoca, pensando no possível gosto de sal que ficaria na boca. Naquele instante, ambos de cabelos grisalhos e barba por fazer, sentiam-se como dois adolescentes, conhecendo as nuances do amor pela primeira vez. Em determinado momento do filme, Gabriel se assustou com uma cena e acabou pegando na mão direita de João. Este, por sua vez, encarou o outro com certa precisão e foi chegando perto até os hálitos se misturarem e as bocas, por fim, selarem um beijo. Consagrou-se ali o primeiro toque entre os dois.

Te amo com meus estados de ânimo que são muitos e mudar de humor continuadamente pelo que você já sabe: o tempo, a vida, a morte.

Te amo de uma maneira inexplicável,
de uma forma inconfessável,
de um modo contraditório.
Te amo, com meus estados de ânimo que são muitos
e mudar de humor continuadamente
pelo que você já sabe
o tempo,
a vida,
a morte.
Te amo, com o mundo que não entendo
com as pessoas que não compreendem
com a ambivalência de minha alma
com a incoerência dos meus atos
com a fatalidade do destino
com a conspiração do desejo
com a ambigüidade dos fatos
ainda quando digo que não te amo, te amo
até quando te engano, não te engano
no fundo levo a cabo um plano
para amar-te melhor
Te amo , sem refletir, inconscientemente
irresponsavelmente, espontaneamente
involuntariamente, por instinto
por impulso, irracionalmente
de fato não tenho argumentos lógicos
nem sequer improvisados
para fundamentar este amor que sinto por ti
que surgiu misteriosamente do nada
que não resolveu magicamente nada
e que milagrosamente, pouco a pouco, com pouco e nada,
melhorou o pior de mim.
Te amo
Te amo com um corpo que não pensa
com um coração que não raciocina
com uma cabeça que não coordena.
Te amo incompreensivelmente
sem perguntar-me porque te amo
sem importar-me porque te amo
sem questionar-me porque te amo
Te amo
simplesmente porque te amo
eu mesmo não sei porque te amo…

Era meio de tarde no litoral. Num pequeno vilarejo com pouco mais de 500 habitantes, uma criança estava por vir ao mundo. Sua mãe, uma moça da região, que ganhava a vida lavando roupas no rio. Seu pai, um pescador que, dia após dia, enfrentava o alto mar, em busca de peixes grandes. Na verdade ele era um empresário da metrópole. Vivia seus dias na correria, entre a fumaça dos carros e o frio do ar condicionado do escritório. Não sorria e tinha muita dor na coluna. Numa manhã qualquer, após perceber que estava ficando corcunda, por conta do trabalho, decidiu abandonar tudo e ir atrás do que pudesse justificar a sua existência. Dessa maneira foi que parou no vilarejo. Como lá não precisava de empresários, ele encontrou na pescaria a fonte de sua sobrevivência. Pouco tempo depois conheceu a lavadeira e, logo à primeira vista, se apaixonaram. Ele era muito soturno, calado, trazia em si certo ar de poeta. Ela, absurdamente bonita e conversadeira. Mais parecia uma matraca. Tinha curiosidade por absolutamente todas as coisas do universo. Queria saber por que o mar era azul, porque as estrelas só apareciam à noite e porque os sonhos vinham quando se estava dormindo. Após dois meses de namoro, decidiram morar juntos, num pequeno casebre feito de madeira. Não demorou muito tempo e a lavadeira engravidou. Seria o primeiro filho do casal. Ele, o pescador, passou a trabalhar com ainda mais garra e felicidade, pegando muitos peixes para vender na feira do vilarejo. Ela aumentou o número de roupas recolhidas para lavar, juntando um trocado, pensando no futuro da criança. Após nove meses de expectativa, as dores do parto finalmente chegaram. Estavam apenas os dois e a parteira em casa. Dava-se para ouvir lá de fora os gritos de dor a cada contração. A parteira ficou nervosa. Ao que parecia, o parto seria longo e doloroso. A lavadeira pôs-se a chorar, com medo de acontecer algo com a criança. Foi quando ele, o pescador, pegou em sua mão e começou a recitar, de maneira prolongada, um poema de Pablo Neruda, mais conhecido como Te Amo. Parece que a magia tomou conta do local. A cada palavra dita, as dores da lavadeira diminuíam e a casa assumia um ar de leveza. Ao fim do poema, quando estabeleceu-se o ponto final, a criança, uma menina, saiu berrando do ventre da mãe. Era pequerrucha, rosada da cor do jambo e de mãos muito delicadas. Segurando de maneira cuidadosa o corpo da filha, o pescador colocou-a nos braços da lavadeira para que ambas pudessem experienciar o significado do amor materno através da amamentação.

Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?

 

Estavam juntas há algum tempo. Não esse tempo contado nos relógios e nos calendários feitos por humanos. Estavam juntas há algum tempo a partir das batidas dos seus corações. O que eram muitas, por sinal. O encontro de ambas tinha sido tão surpreendente e intenso que elas desconfiavam que fosse alguma coisa de mandinga. Porque realmente tudo se deu de uma forma muito rápida. Se tombaram numa rua de paralelepípedos, sorriram uma para outra, depois foram tomar banho de mar peladas numa praia deserta. E fizeram amor na areia e saíram para jantar e compraram uma esteira onde repousaram seus ardis, seus planos, suas paixões. Na concretude do cotidiano, elas solidificaram uma vida a duas. Uma vida a duas muito particular. Todos que viam de fora achavam que aquele amor era puro fogo da palha. Triste engano. Numa noite quente de fim de ano, a programação do casal seria brincar num parquinho que se instalara na cidade. Compraram uma maçã do amor e foram em direção à roda gigante. Sentaram-se bem agarradinhas com a boca suja de doce e com os braços entrelaçados, fazendo carinho uma no ombro da outra. No momento em que a roda gigante atingiu o ponto máximo de altura e Ana percebeu o vento balançar seus cabelos, ela teve um leve tremor. Quando criança adorava essa sensação, mas, após determinado período de sua vida, adquirira medo de altura. Nesse exato momento, das caixas de som espalhadas por todo o parque começou a sair a melodia de uma música antiga e bonita chamada She, de Charles Aznavour. Os olhos de Bárbara, mulher séria e comprometida, filha de dois pais, Chico e Ruy, e detentora dos maiores sonhos de existência se inundaram de lágrimas. Com o rosto corado e de maneira desajeitada, Barbara colocou a mão no seu bolso esquerdo. Tirou dele uma pequena caixinha vermelha aveludada e entregou a Ana. Quando esta abriu viu que, dentro da caixinha, havia uma pequena pedra. Não era uma pedra de valor. Esmeralda, rubi, safira ou diamante. Era uma pedra daquelas pequeninas, acinzentadas, que a gente encontra na beira do mar. Ana lembrou-se do dia, cheio de comemorações e com o sol nascendo no horizonte, em que estava com os pés na água e sentira algo espetá-los. Era a pedra. Pegou-a e ofertou a Barbara de presente. Não poderia imaginar, sequer supor que, após meses de realização desse pequeno ato, Barbara devolveria a pedra, dessa vez como um símbolo de um pedido. Sim, através da pedra Barbara pediu Ana em casamento. Queria construir, partilhar um só caminho, cheio de flores, árvores e vida. Pensava em filhos, casa grande com quintal e varanda, mesa para oito. Ana deixou a maçã do amor cair de suas mãos e parar no chão de terra, embaixo da roda gigante. Guardou a pedra, piscou os olhos e beijou Barbara na testa. Ela ainda não sabia, mas daquele momento em diante, nunca mais teria medo de altura.



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