Pipoca Moderna: Tornando-se mulher!

Por Mariana Kaoos

maria rogaciana

Nos estudos das representações sociais dentro da pós modernidade conhecemos desde cedo teorias mil que referendam a hipótese de que nós, seres humanos, sujeitos imersos nesses tempos líquidos, temos a estrutura e capacidade de interagirmos e nos identificarmos com as mais diversas e distintas formas identitárias. O que isso quer dizer? Basicamente que há uma confluência de signos, significantes e significados que nomeiam e respondem o questionamento que viemos a conhecer como “quem sou eu?”.

Digo, um teórico muito bacaninha, chamado Stuart Hall, defende que a pós modernidade permite que transitemos por inúmeras identidades ao mesmo tempo. Já o sociólogo Irving Goffman, no seu livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, afirma com veemência que possuímos “máscaras” (representações próprias) que variam de acordo com o ambiente e estrutura que ele oferece. Ou seja, hora somos um, hora somos outro.

Se por um lado assumir diversas identidades pode nos confundir a cabeça, por outro, esse ato, quando utilizado de maneira consciente, pode ser libertador. Eu mesma adoro dizer por aí que nesse meu corpinho cremoso habitam quatro seres com personalidades e formatos distintos. Mariana, Alice, a Narradora e Gabriel. Todos surgem em momentos propícios, de acordo com as circunstancias estabelecidas e a necessidade de se adequar (ou conduzir) determinadas situações. Mas não só. Além desses quatro, existem também outras e outros que se consolidam em determinadas instancias.

Vocês não estão entendendo aonde eu quero chegar? Bom, quando pensei na criação dessa coluna, intitulada Pipoca Moderna, tracei como objetivo fazer dela um espaço aberto para que artistas, estudantes, jornalistas, pensadores, teóricos, enfim, para que toda e qualquer pessoa que tenha interesse, possa se expressar através de análises culturais da realidade (ou, ao menos, de um fragmento dela) que nos cerca. Alguns nomes muito bacanas como Gilmar Dantas, Luiza Audaz, Nahla Valentina e Adriana Amorim já passaram por aqui. A perspectiva (o meu desejo, melhor falando) é que Pipoca Moderna venha a se tornar algo constante e permanente, atiçando, provocando, contribuindo, democratizando e referendando o direito da fala de todos nós.

Justamente por isso que hoje não teremos o Tome Nota. Optei aqui pelo Pipoca Moderna e decidi abrir espaço para mim mesma. Não para a Mariana ou a Narradora que vos fala com certa frequência, tampouco para Alice ou Gabriel. Hoje eu estou abrindo espaço para mim mesma enquanto Mariana, feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres que (adivinhem só?) vai falar sobre (tchan tchan tchan tchan) a preciosidade que é a luta e a formação feminista. Portanto, queridas e queridos, prestem atenção no seguinte relato:

Viramundo Virado

Mariana Kaoos – Militante da Marcha Mundial das Mulheres de Vitória da Conquista

Tudo aconteceu numa tarde qualquer. Não lembro ao certo a estação, tampouco o dia exato. Sei que era por volta das 15 horas. E que fazia sol e o azul irradiava no céu. O meu olhar estava atento a tudo que me circundava e minha mente não parava. Minha mão direita trazia em si um leve cheiro de cigarro e na boca aquele gosto de pastilhas Garoto. As palavras brotavam no peito, nos lábios, na vida. Exatamente naquela tarde, Simone chegou, aparentemente, como quem nada queria. Confesso que me pegou de surpresa. Sabe quando estamos distraídas ou muito concentradas, vem alguém por trás e nos mete um susto daqueles? Foi mais ou menos assim a vinda de Simone.

E, voraz, precisa, necessária naquela tarde qualquer, Simone fitou meu ser, contraiu os lábios vermelhos de uma maneira ávida e inebriante e pronunciou a seguinte frase: “Não se nasce mulher. Torna-se mulher”. Confusa e abismada com a solidez do que me acabara de ser dito, fiquei com tal afirmação durante muitos anos no pensamento.

Gosto sempre de fazer analogias, metáforas para explicar certas coisas da existência. As minhas indagações, por exemplo, são jangadas, barquinhos, grandes navios a navegar num oceano infinito. Quando encontro respostas que saciam certas indagações, é porque o meu meio de locomoção achou algum porto seguro. Às vezes ele fica por lá, noutros momentos não se demora. Enfim, o que quero dizer é que “navegar é preciso, viver não é preciso” e, sendo assim e assim sendo, a frase de Simone se tornou questionamento em mim. Aportei meu barco em quantos portos me foi possível. Poesias, músicas, teorias acadêmicas, projetos políticos, romances de ficção, peças teatrais, filmes e mais filmes e mais filmes.

Comecei a pensar, depois de determinado período que, talvez, bem talvez, o que Simone estava querendo me dizer é que o ser mulher é uma construção social. Uma representação, identidade, papel condicionado e, por assim sê-lo, imposição estabelecida por uma conjuntura politica e histórica que nos cerca. Certamente que o ser mulher em Esparta era totalmente diferente do ser mulher em Atenas, no período clássico da Grécia antiga. Assim como o ser mulher assumiu outra conotação na baixa e na alta Idade Média, na época da inquisição, das grandes navegações, no período entre guerras, nas revoluções industriais, em maio de 1968, na intensa ascensão do modelo capitalista em todo o mundo e na contemporaneidade. Essa ultima líquida, individualista e fugaz, como Bauman, um querido que mora no meu coração, gosta de descrever.

Quando eu saí da barriga de minha mãe, no ano de 1989, os meus avós, que estavam lá fora, no corredor, conseguiram ouvir o médico gritar: “É uma mulher”! Polvorosos com a notícia, comemoraram bastante a minha chegada a esse mundo. Naquele último ano da década de 1980, diversas acontecimentos marcaram a vida política e cultural das pessoas: a morte de Salvador Dali, a declaração de Cazuza à imprensa alegando ser portador da aids, a queda do Muro de Berlim simbolizando o triunfo do capital, a edição da Rede Globo do debate dos candidatos à presidência da república brasileira, Fernando Collor de Melo e Luiz Inácio Lula da Silva e, posteriormente, a vitória de Collor, dentre várias outras coisas.

Bom, assim como a grande maioria, eu nasci berrando, cheia de sebo no corpo, de olhos abertos, com fome, irracional, primitiva e nem aí para o meu gênero biológico. Quem se importava com ele e dava conta dos mínimos detalhes que o correspondiam na verdade era a família, os meus médicos, as minhas babás e, mais para frente, os meus professores educacionais. Durante toda a década de 1990, aprendi que ser mulher na sociedade era se posicionar, se portar a partir de determinadas normas pre estabelecidas.

Em nenhum momento me foi dado o direito de escolha em relação a pequenos, pequeniníssimos detalhes como, por exemplo, se eu preferia jogar futebol a dançar ballet ou a ter cabelo curtinho e usar bermudas de tactel a ter um cabelão e me vestir com vestidos majestosos. Na verdade, eu, como boa menina, tinha que ter uma letra bonita na escola, brincar de barbie, cuidar da aparência e esperar sempre que o menino pelo qual eu estivesse apaixonada chegasse em mim, pois não era certo, em hipótese alguma, que a menina tomasse a atitude.

Confesso, confesso mesmo que, por outro lado, meus pais me orientaram de uma maneira muito isenta e honesta. Eles investiram na minha educação cultural, principalmente no que tange o universo literário, e apontaram formatos diferentes e mágicos para que eu pudesse trilhar pelo mundo. Contudo, enquanto eles me ofereciam suporte para encontrar um possível caminho libertário existencial, a sociedade de uma maneira geral, sempre me reprimia, ou, fazendo uma apropriação daquele ditado popular, a sociedade sempre me colocava no meu lugar. Que lugar era esse? Aquele mesmo que, dia desses, a Revista Veja veio a descrever como tendo que conter as características de bela, recatada e do lar.

Gosto de pensar que todas as coisas acontecem porque necessitam de acontecer. Tudo, tudo ao nosso redor, as pessoas que aparecem, os livros que chegam, os movimentos ideológicos que surgem, tudo tem um por que, ainda que não desconfiemos, ainda que sequer saibamos no momento em que a coisa se dá. No ano 2000, aos meus dez anos de idade, as minhas preocupações e os meus pensamentos centravam-se basicamente na agitação da vida escolar. Mal sabia eu que aquele seria o ano derradeiro, de criação de um movimento, mais conhecido como Marcha Mundial das Mulheres, que, dezesseis anos depois, viria a ser o meu instrumento de libertação e compreensão do real significado de ser mulher.

tolerancia

Eu já falei, vou repetir: Eu já falei, vou repetir. A Marcha Mundial das Mulheres surge através de uma mobilização feminina em vários países em torno de pautas como a pobreza e a violência. A primeira ação ocorreu no oito de março (tido como o Dia Internacional da Mulher), trazendo o tema “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência sexista”. A partir daí, já dá para imaginar o que ocorreu: diversos outros atos foram puxados até o dia 17 de outubro. Pela própria incapacidade da mente humana, não consigo me lembrar o que eu fazia no oito de março desse ano (provavelmente dando algum presente relacionado ao lar para minha mãe), tampouco no 17 de outubro. Ainda que eu não tivesse noção do surgimento da Marcha na época, atualmente, encaro como um dos principais acontecimentos do ano 2000.

Bom, em Vitória da Conquista temos um núcleo, intitulado Maria Rogaciana (neta de escravos que lutou pela libertação dos negros) funcionando há exatos três anos. A nossa Marcha, aqui, reúne mulheres de todas as cores, condições financeiras, orientações sexuais, perspectivas profissionais, enfim, o principal objetivo é o do empoderamento feminino e o de pensar, criar e colocar em plano táticas de intervenções sociais que visem um avanço na linha de frente da batalha contra o patriarcado, o racismo, a homofobia e as opressões de modo geral.

Ao longo desses três anos, o Maria Rogaciana já se posicionou contra diversas manifestações culturais machistas, realizou a famosa operação lambe lambe em pontos da cidade, produziu um sarau feminista, uma Escola de Formação Feminista, esteve presente em atos a favor da democracia, dentre várias, mas várias outras coisas. Agora, nesse atual momento, além de construir a Frente Brasil Popular e de estar ocupando diversos espaços, lacunas sociais, a Marcha realiza encontros de formação.

Os encontros geralmente ocorrem em dias de domingo, uma vez por mês, e tem como objetivo apresentar algum tema e fazer uma conexão com a vida e possível atuação das mulheres dentro dele. Não tem nem seis meses que eu integro o núcleo Maria Rogaciana, mas mediei, junto com a jornalista Ana Paula Marques, nesse último domingo, 05, uma formação sobre cultura. E, agora, faltam até palavras para que eu possa descrever qual a sensação de facilitar um espaço tão importante para mim e de ver a discussão se alastrando por mais de três horas seguidas. Além de satisfatório é, no mínimo, engrandecedor falar, ouvir, trocar e, principalmente, questionar a realidade que nos cerca ao lado dessas mulheres.

Se tem uma coisa que eu aprendi dentro da Marcha foi a admirar as minhas companheiras de militância. Olho para todas com um profundo respeito. São mulheres de luta, de sonho, de garra e de conhecimento. Cada qual com um jeito, um olhar político totalmente distinto da outra, mas com interseções, como a crença conjunta num projeto popular de sociedade. Acredito que o que nos uma não seja apenas o fato de sermos mulheres ou a pre disposição política. Sinto que o que nos mantem juntas é um elo, invisível, que nos faz dar as mãos em torno de sonhos, utopias, certezas e desejos. Desejos, acima de tudo, de ser povo e lutar por ele.

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Penso em como eu era quando Simone me chegou pela primeira vez e em como eu sou agora, imersa na Marcha Mundial das Mulheres e ainda mais consciente do meu dever social. Penso nos condicionamentos que sofri durante toda a minha existência, nos papéis que tive que assumir, nos instantes em que me reprimi e me calei. Penso na forma como a comunicação, os veículos midiáticos, me tratou ao longo de todos esses anos. Penso na maneira como a Industria Cultural vende, me empurra goela abaixo seus produtos e qual a real função deles. Penso também nas identidades hegemônicas e periféricas, nos padrões de belezas impostos socialmente, na necessidade de disputa e desconstrução. Isso mesmo, acho que a palavra é desconstrução.

A mulher que me é imposta pelo capitalismo e patriarcado eu não quero ser. Chegou a hora de assassina-la e estudar, lutar, contribuir, questionar, transformar esse real para que, quem sabe, possa nascer um novo formato de mulher. Um novo formato de mulher em um novo formato político social, onde palavras como “popular”, “equidade”, “desalienação”, “revolução” e tantas outras que agora não cabe falar, possam preponderar no cotidiano de todas e todos. O como fazer eu ando descobrindo aos poucos, junto com as companheiras do Maria Rogaciana. Cada descoberta é um novo sorriso e estímulo para continuar na luta. Tem dias que avançamos cinco passos, outros dias que regredimos dez para depois estarmos melhor preparadas para correr uma maratona. O que não dá é para ficar parada ou, como dizia Raul, sentar-se no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheias de dentes, esperando a morte chegar.

Portanto, é chegada a vigésima quinta hora. O feminismo, além de bonito e libertador, é imprescindível, motor principal, peça chave para as transformações sociais que buscamos no momento. O núcleo Maria Rogaciana é aberto para toda e qualquer mulher que queira se juntar a ele. A próxima reunião de formação ocorrerá no dia 19 de junho, a partir das 9 horas,  e contará com a presença da advogada Izadora Guedes falando sobre Feminismo e Teoria da Organização. Avancemos!



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