Tome Nota: Incertezas políticas, impeachment, bicho papão e poesia

Por Mariana Kaoos

Queridos, já ensaiei começar esse texto algumas tantas vezes e confesso que, por incrível ironia do destino, acordei no dia de hoje com excesso de palavras e não sei qual delas proferir. Digo, ao abrir meus olhos nessa segunda-feira turva logo constatei a presença de uma tempestade em meus pensamentos. Ah, raios, trovões, relâmpagos e chuva em abundância invadiram pedaço por pedaço de meu cérebro. Minhas ideias foram arrastadas por uma tromba d’água que se estabeleceu lá no leito de minha racionalidade e veio desaguar nos meus sentires existenciais. Por sorte, as minhas crenças, além de fortes guerreiras, são espertas que só: Quando perceberam a enxurrada de águas incertas descendo pensamento abaixo, elas trataram logo de conseguir alguns botes salva vidas. Não deu para salvar a tudo e a todos, é óbvio. Contudo, minhas ideologias foram todas preservadas e se encontram em barquinhos indestrutíveis, rumando sempre pelo caminho da esquerda que, segundo elas, é o caminho que as levará para pisar em terra firme depois que a tempestade cessar.

Por conta disso, no Tome Nota de hoje a cultura não virá em programações delícias em formatos de entretenimento. Digo, temos mesmo cabeça para isso nesse instante? Bom, eu pelo menos não. E, em não tendo, me falta estímulo e estrutura imagética para seguir pelo Tome Nota de sempre. Ou, pensando em outra perspectiva, me sobra honestidade e clarividência para, agora, pegar um atalho e seguir por outro caminho. Ele, no entanto, ainda que recheado das Árvores Duvidosas e das Flores Confusão não deixa, por um segundo sequer, de ser poético e preciso.

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Em 1847 nasceu um menino diferente de muitos dos meninos que haviam por aí. Ele já saiu da barriga de sua mãe de olhos arregalados para o mundo. E com aquele ar de quem tudo sabia. Após uma infância tenra, Antônio Frederico cresceu e se enveredou pelo rumo das palavras. E que bom que isso ocorreu, porque ele possuía a sensibilidade necessária para tal. O menino, aliás, o homem, aliás, o poeta viveu no Brasil Império ainda marcado pela escravidão e pela discrepância social.  Um Brasil Império marcado pela miséria, pela violência, exploração, pela fome e pela dor. O espirito de Antônio era daqueles espíritos aventureiros e justos, que não se conformam com as arbitrariedades da vida. Como não conseguia (e não tinha que) ser alheio à realidade que o circundava, o poeta dedicou sua obra à questão escravista. Em 1871, aos 24 anos de idade, Antônio Frederico contraiu tuberculose e desencarnou. Ele deixou, no entanto, seus escritos que, de tão fortes que eram, sobreviveu dia após dia, ano após ano, década após década, poeira após poeira.

Passado mais de um século, um livro de Antônio Frederico chegou ate a mim. Na época eu tinha nove anos e a obra em questão 130. Intitulada O Navio Negreiro, ela vinha assinada pelo nome do poeta. Alias, pelo sobrenome dele: Castro Alves. E o que falar de Navio Negreiro? Bom, foi o primeiro poema que eu decorei na vida, foi através dele que eu me despertei para um começo de compreensão do que, de fato, tivera sido a escravidão brasileira. Foi com Navio Negreiro que eu percebi que a arte cumpre uma função social e o quão ela é poderosa e conduz pensamentos, crenças, ideologias e até praticas simbólicas sociais. Foi, por fim, através de Castro Alves e seu livro em questão, que eu me apaixonei pela poesia e comecei a procurar tantos outros poetas brasileiros com suas mais variadas visões de mundo e suas tão profundas e belas palavras.

E um desses outros poetas se chama José Ribamar Ferreira. Ele nasceu em São Luís do Maranhão no ano de 1930 e é vivinho da silva até os dias de hoje. José Ribamar é escritor, poeta, biógrafo, crítico de arte, tradutor, ensaísta brasileiro e um dos fundadores de um movimento denominado neoconcretismo. Mas não só. Em sua juventude ele trilhou pelos rumos da militância política, integrou o Partido Comunista Brasileiro e chegou, inclusive, a ser exilado do país durante a nossa obscura época ditatorial. Foi durante esses anos, mais precisamente em 1975, que José Ribamar escreveu um dos seus principais escritos, mais conhecido como Poema Sujo. E bom, exilado na Argentina, nessa obra, o autor fala sobre a sua condição existencial, bem como a situação do Brasil e da América Latina. Poema Sujo me chegou por volta do ano de 2006, quando eu possuía dezesseis anos de idade. Me apaixonei e comecei a acompanhar a obra completa do autor que, popularmente, é mais conhecido como Ferreira Gullar.

Entrou ano saiu ano e minha prateleira foi ocupada por um tanto de autor novo. Novo não, minto! Como sempre tive pequenos problemas com a contemporaneidade, a minha prateleira foi ocupada por um tanto de autor clássico. Me deixei levar pelas histórias de cada um e absorvi mais palavras, mais vida e mais amor. Devo confessar que Ferreira Gullar e Castro Alves, apesar de sempre intensos em mim, andavam distantes de meus olhos e pensamentos.

Foi nesse fim de semana em que tudo mudou:

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– Pelas mãos de uma nova possível paixão, resgatei Ferreira e li e reli algumas críticas sobre Poema Sujo e as outras obras do autor.

– Como se fosse encanto sussurrado pelo vento, uma frase de Castro Alves ecoou em mim e fez acordar suas palavras que, agora, percebo eu, ultrapassam o cerne escravista e falam também dos nossos dias e da nossa política.

– Acompanhei na tarde de domingo, 17, na Praça do Boneco, no Bairro Brasil, a votação da Câmara dos Deputados sobre o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e fiquei escandalizada com alguns discursos inflamados.

Vocês não entenderam  o que essas três coisas tem a ver? Então, estamos vivendo um momento caótico no Brasil e isso vem afetando todas as instancias (profissionais, psicológicas, físicas, pessoais, amorosas, religiosas, etc) de vida das pessoas. Pelo menos, de parte delas. Pelo menos da minha. E, sendo assim e assim sendo, ainda que eu possua lado e que ele seja pleno e convicto em mim, algumas incongruências da nossa atual conjuntura social me causam espanto, tristeza e dúvida.

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Porque vejam bem, queridos, não estamos passando apenas por uma crise política e sim por uma quebra, uma ruptura de valores e de respeito ao outro. Discursos de ódio, agressões físicas, manipulação, arbitrariedades jurídicas, afrontas contra a nossa Constituição, intolerância ao posicionamento alheio, brigas familiares, raiva, ódio, discursos escancarados e violentos, censura, opressão, exaltação da tortura, da ditadura, egoísmo e diversos outros pontos que aqui eu poderia elencar vêm sendo alimentados por todos os cantos. Se o gigante realmente acordou, como disseram os brasileiros nas Jornadas de Junho em 2013, agora, três anos depois ele se tornou um grande monstro que vem engolindo a todos nós, um por um. Engolindo não, que vem mastigando, bem devagarzinho, para que a gente sinta dor, muita dor, antes dele nos engolir.

Fico aqui me perguntando aonde foi que erramos de 2013 para cá. Ou, em que momento nos descuidamos e passamos a alimentar o gigante de maneira errônea. Mais ainda, em que instante preciso perdemos o controle e deixamos que outras pessoas, com tantas outras diversificadas intenções, passassem a alimentar única e exclusivamente esse gigante que agora é bicho papão e nos assombra toda noite antes de irmos dormir?

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Na tarde de domingo, ao acompanhar o processo de impeachment, ouvi discursos coesos de ambas as partes. Mas ouvi também palavras loucas e deturpadas. Ouvi gritos ufânicos contra a corrupção por pessoas que (adivinhem só?!) são corruptas e também ouvi que decisões importantíssimas como apoiar ou não um processo de impeachment são tomadas pensando em mulheres e filhos, e não em lucidez política. Ouvi o nome de Deus no meio disso tudo, ironicamente como se ele, o Todo Poderoso, tivesse vindo conversar com os nossos deputados e tivesse dito “amadinhos, a minha vontade é a de que vocês votem sim, ok?!”. Blasfêmia total! Ouvi, chocada, discursos dando um viva à ditadura de 1964 e até mesmo ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido como torturador e ligado a mais de 60 casos de morte e desaparecimento em São Paulo.

Fui dormir amedrontada, insegura, receosa dos próximos dias, decepcionada comigo mesma e com o meu país, triste, estarrecida, emudecida, chorosa e com um turbilhão de perguntas sem respostas. E na tentativa de falar um pouco sobre isso, pego emprestado alguns trechos de Poema Sujo e Navio Negreiro para, quem sabe, traduzir esses últimos acontecimentos sociais. Se a poesia não nos salvar, que ela, ao menos, nos aponte o caminho da lucidez e nos dê força para ensaiarmos nossos próximos passos.

E existe um povo que a bandeira empresta

P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!…

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?!…

Silêncio!… Musa! chora, chora tanto

Que o pavilhão se lave no seu pranto…

 

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra,

E as promessas divinas da esperança…

Tu, que da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança,

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!…

 

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu na vaga,

Como um íris no pélago profundo!…

…Mas é infâmia demais…

Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo…

Andrada! arranca este pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta de teus mares!

Castro Alves – O Navio Negreiro

 

Não obstante,

Alguém que venha da rua

-Tendo caminhado a fantástica imobilidade da Via Láctea-

Pode ter a impressão,

Diante daqueles corpos adormecidos

De que o universo morreu

(quando de fato

Em todas as torneiras da cidade

A manhã está prestes a jorrar)

Menos, claro

Nas palafitas da Baixinha, à margem

Da estrada de ferro,

Onde não há água encanada:

Ali

O clarão contido sob a noite

Não é

Como na cidade

O punho fechado da água dentro dos canos:

É o punho

Da vida

Fechada

Dentro da lama.

Trecho de Poema Sujo – Ferreira Gullar.

 



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