Xangai fala sobre a participação em ‘Velho Chico’ e a cultura do sertão

Do Correio Braziliense

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Foi uma parteira quem trouxe Eugênio Avelino ao mundo.O compositor e cantor Xangai nasceu ao som do Córrego do Jundiá, que corria ali pelas bandas da fazenda onde a família morava, no interior da Bahia. Lá, já não mana mais água. Mas ele ainda teve tempo de correr descalço pela margem do córrego ou se banhar nas águas do Rio Jequitinhonha, que também irriga a região.

Mas foi em Vitória da Conquista onde Xangai esbarrou com o destino que marcou toda a sua vida. Aos 9 anos, encontra o compositor e pensador Elomar, uma das grandes vozes do cancioneiro nordestino. Dez anos mais velho, Elomar se torna referência pessoal do pequeno Xangai, que passa a tomar lições que o conduziriam pelo resto da vida. “Um grande mestre. Um pai. As pessoas costumam dizer que sou o grande intérprete da obra de Elomar. Bobagem. Dei sorte porque conheço a linguagem, sou porco do mesmo chiqueiro, galo do mesmo galinheiro”, conta o baiano. >Aos 68 anos de estrada, sendo 40 de carreira fonográfica, Xangai encara uma ruptura no cotidiano atual, desde que passou a integrar o núcleo da novela Velho Chico, para a qual compôs algumas canções. O público tem tido a chance de ver o violeiro entoando cantigas populares e representando a figura do sertanejo tradicional na trama. Tal qual ele, de fato, é.

Na jornada, marcada por sucessos a exemplo dos discos Cantoria e Qué qui tu tem canário, Xangai deu voz a um povo desamparado, mas que melhor representa a alma do verdadeiro brasileiro. “Eu nasci acordado e espero não dormir tão cedo. E ter a chance de poder ainda cantar nossos rios, nossos pássaros, o Córrego de Jundiá, onde nasci e onde não corre água há muitos anos, o Rio Jequitinhonha, o São Francisco, o povo de pé no chão.”
 >>Entrevista // Xangai
 <Como recebeu o convite para a novela? 
Foi uma surpresa. Não imaginava que alguém da emissora estivesse ligado no trabalho que a gente faz. O convite veio do próprio Luiz Fernando Carvalho (diretor da novela), que se disse grande admirador do meu trabalho. Fiquei tocado principalmente pela temática. As novelas costumam se voltar muito pro urbano, pras tramas policiais, pros apartamentos. Quando soube que o enredo girava em torno do Rio São Francisco, fiquei ainda mais feliz. Além das participações em vídeo, compus as chamadas e parte da trilha, com o auxílio do talentoso (compositor e violonista) Maciel Melo.
 
São 40 anos de carreira? 
O primeiro disco é de 1976, mas a carreira começa quando a gente nasce. Ou, antes ainda, para quem acredita em reencarnação. A minha mesmo começou há milhares de anos.
Com essa jornada milenar, te assusta que muitos ainda não tenham descoberto seu trabalho? 
Não me assusta, não. Isso é fruto da desinformação. Há pessoas em Vitória da Conquista, minha terra, que não sabem quem é Xangai. Que não conhecem Elomar. Mas já ouviram falar em um cara que morreu em um acidente de carro que eu não conhecia, mas que gerou uma comoção nacional (ele se refere ao cantor Cristiano Araújo, morto em 2015). Nada contra ele nem contra ninguém. Mas a mídia toma a frente desse processo. Eu não sei assoviar uma música dele. Sei assoviar Caetano Veloso, João do Vale, Lupicínio Rodrigues, Adoniran Barbosa, Luiz Gonzaga, Zé Mulato e Cassiano, Gilberto Gil, Chico Buarque, Cartola, Dorival Caymmi, Gordurinha, Edu Lobo e por aí vai. Na arte, eu me posiciono como um esteta.
Mas se posiciona também politicamente? 
A minha trajetória em si já está permeada por minhas convicções. Vou te contar uma história: há um crescente na desertificação no Brasil. Onde havia pequi, aroeira, aí no cerrado, há soja. Onde foi parar o São Francisco? Que teve água sugada para irrigar soja, eucalipto, milho. Aí temos as carretas carregando esses grãos por todas as estradas do país. Há um desperdício absurdo. Meu amigo, o que cai de grãos desse transporte! Dava para pagar uma porrada de dívidas, para fazer uma porrada de escolas, para ajeitar a saúde. Um desperdício de comida, de alimento. Além de causar acidentes. Vidas são ceifadas pelas estradas, de pessoas e de animas, que invadem a rodovia para comer os grãos caídos. E nunca vi ninguém falar disso. Eu falo mais sobre esse tipo de coisa. Talvez por isso me chamem de “cantor da natureza”, “cantor do meio ambiente”. Minha política é essa.
Mas você deve ter algo a dizer sobre o cenário atual… 
Eu não confio na maioria dos políticos porque eles não honram os votos que recebem. Não torço para lado nenhum, porque não confio em nenhum deles. Imagino que haja alguém de boa vontade ali dentro, mas, no processo, a maioria acaba se corrompendo. Minha única surpresa é perceber que vem sendo conduzida uma investigação de uma forma que nunca foi feita antes. Não lembro de nenhum mandatário que tenha sido investigado profundamente, embora tenham pintado e bordado a vida inteira. Acho essa iniciativa atual salutar. Agora, não é Brasília não. É o país inteiro. Todo brasileiro precisa criar vergonha na cara, e me incluo nessa, e cuidar de si. Dobrar o cobertor que você dormiu. Escovar o dente, tomar banho, coloca menino na escola. Ter uma disposição para o trabalho e ser honrado. Não é sacrifício. É dever.
Vamos falar sobre Elomar? Você o considera injustiçado? Acredita que ele deveria ser melhor reconhecido? 
Há uma injustiça, sim. Mas ele não está muito preocupado, não. Até porque o injustiçado não é ele. É o povo brasileiro. Esses pseudointelectuais que dizem que a obra dele é de difícil compreensão, não sabem de nada. Não tem nada disso.
Quando você pensa na obra de Elomar, o que te vem à mente? 
João Guimarães Rosa. Um dos grandes “brasileranças” deste país. Veja bem: na condição de historiadores, escritores, tanto Elomar como Guimarães Rosa falam de um povo, de uma história, de uma realidade, que a maioria das pessoas que escrevem não está interessada. Eles são voltados para um povo desassistido. O povo do sertão. E Elomar ainda tem uma vantagem. Além de ser tão grande quanto Guimarães, nos escritos, ele é tão grande quanto Beethoven como músico. Agora, por que não o mostram por aí? Não sou eu o dono das emissoras de televisão e rádios. Não sou dono de jornal. Não sou ministro da Educação, da Cultura. Não sou dono de teatros nem secretário de Cultura, não sou da Embratur nem de “embraescambal” nenhum. O povo é quem perde por não ter contato com uma obra tão bela.
Preciso te perguntar sobre “brasilerança”, que perpassa todo seu discurso. A palavra foi nome de um disco seu, de um programa de rádio…
“Brasilerança” é tudo que herdamos, tudo que temos. A herança brasileira. Desde o primeiro habitante. Eu não falo português, perceba. Eu também falo português. Mas eu falo mesmo “brasilerança”. “Goiás”, Itatiaia”, “Jequitinhonha”, “Parnaíba”, “Ibituruna”… Não é português. É a linguagem dos indígenas acrescida de todos os colonizadores. Holandeses, ingleses, portugueses, africanos. Essa é a língua que eu falo, canto e respeito. Nossa tradição. E Brasília é a capital da “brasilerança” e não deveria se esquecer, jamais, de honrar essa responsabilidade.


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