Conquista: A sobrevivência da cultura popular

Por Mariana Kaoos

Foto: Amanda Nascto
Foto: Amanda Nascto

Era quarta-feira no sertão. Hoje faz exatamente uma semana e um dia do ocorrido e meus olhos e meu peito ainda chamuscam labaredas de encanto, de verdade. Diferente desse dia acinzentado de incertezas que nos circunda, naquela quarta-feira fazia calor nessas terras secas. Do asfalto quente, subia fumaça e poeira de motor de carro e de entulho, amontoado em cima das carroças.

Os transeuntes suavam, suspiravam, semicerravam os olhos por conta de tamanha claridade. E o céu, bom, naquele dia o céu estava de um azul turquesa inigualável. O Astro Rei imperava de maneira soberana lá no alto e nenhuma nuvem branca competia com a sua magnitude. Os urubus sobrevoavam o sertão, a procura de carne. Os escorpiões, os calangos, as corais falsas saiam de suas tocas rondando a sua caça. E os tocadores, bem, os tocadores, os contadores de causos e lendas folclóricas daquele lugar estavam onde deveriam estar: na feira popular do sertão, onde um pastel com caldo de cana saia por apenas três reais e onde o povo é mais vivo e a vida tem mais cor.

Foto: Amanda Nascto
Foto: Amanda Nascto

O picoleiro corria pela cidade inteira com seu carrinho, vendendo os mais variados sabores. Assim como o moço do milho e da pamonha. Os botecos se encontravam lotados de poetas e boêmios. O prefeito, no seu gabinete, assinava papéis sem parar. As horas corriam. Tudo naquele dia parecia igual a todos os outros. A rotina, o cotidiano do sertão mais uma vez era previsto e transcorrido conforme o imaginado. Ninguém poderia supor, sequer imaginar, que exatamente naquela quarta-feira de calor havia uma presença diferente na cidade. Aliás, ninguém menos ela, a menina de olhos esbugalhados para as surpresas da vida.

Foto: Amanda Nascto
Foto: Amanda Nascto

Como se pudesse sentir através do vento a presença da outra, a menina de olhos esbugalhados estava afoita, ansiosa pelo próximo momento. Deitava na cama, levantava da cama. Bebia água. Fumava um cigarro. Tentava se concentrar em vão em alguma leitura necessária. Balançava, assim como num tique nervoso, a perna esquerda sem parar. A menina dos olhos esbugalhados para as surpresas da vida era um pouco feiticeira. Naquele dia, ela acordara com um beliscão no peito e isso era sinal de que algo estava para acontecer. Ela não sabia como, onde e nem por que, mas tinha assim, em si, aquele misto de loucura e de certeza no olhar.

Foi só quando o Astro Rei sumiu no horizonte e deu vez ao negrume de uma noite sem estrelas que a menina se acalmou. Os planos para aquele momento eram de ir ver uma peça no único teatro do vilarejo. O teatro, conhecido como Carlos Jehovah, era um lugar bem modesto e simples, mas de um charme e riqueza sem tamanho. Ah, se as paredes daquele teatro tivessem boca, certamente que elas iriam contar histórias de arrepiar os pelos do corpo e botar os olhos para transbordarem lágrimas. Naquele dia a menina dos olhos esbugalhados estava besta como o quê. Parecia até que era bicho do mato, que nunca tinha ido assistir uma peça de teatro. Botou no corpo a roupa de ir à missa, todos os domingos, e se danou correndo mais de sete léguas para chegar no horário certo e não perder nadinha do espetáculo.

E tome passo tome passo tome passo tome passo. Finalmente a menina chegara ao centro do vilarejo, onde estava o pequeno e simplório teatro. Até que ele estava cheio, com as comadres e os compadres conhecidos nas redondezas e um monte de novos rebentos. Os rebentos, até então, eram desconhecidos pela menina. Contudo, ela não se deixou intimidar, passou sorrindo e cumprimentando a todos. Bom, papo vai, papo vem, a menina estava fumando um cigarro de palha quando, finalmente, o portaozão do teatro se abriu. Era a hora de todos entrarem.

Olha, lá dentro estava uma beleza que só. O cenário todo muito vistoso, arrumado. Era como que se fossem três cômodos de uma casa: A cozinha, onde tinha um monte de xicrinhas e um bule e uma pinga e um coador, daqueles de pano, para o café. Logo ao lado, tinha a salinha de estar, com um santuário cheio de foto bonita de rebanho de gente desconhecida. Por fim, do lado direito, havia uma maquina de costura e, adivinha só? Um passarinho cantarolando. Não era assum preto não. Nem bem te vi. Nem sabiá. Parecia mais era com um canário da terra, todo bonito e vistoso.

Nessa coisa de apreciação do cenário, que fazia uma vistoria bonita, o tempo passou, as luzes se apagaram e, uma moça bem aprumada começou a falar. Me lembro como se fosse minha essa frase e acho que nunca hei de esquece-la: “Quando um velho morre, uma biblioteca se incendeia”. Essa moça se chamava Suzana Nascimento. Andando daqui para ali, de lá para cá, ela começou a vestir umas roupas estranhas e BUM!, Dona Zaninha apareceu.

Deixa eu explicar pr’ocês: Suzana Nascimento é uma atriz muito das boas. Dentre os vários seres que habitam em seu corpo, uma em especial, é muito da sabida e cheia de história curiosa para se ouvir. Se você gosta de causos folclóricos, já deve ter escutado falar dessa senhora, a quem chamam de Dona Zaninha. Ela é espevitaaaaada.

Naquela noite sem estrelas, a menina de olhos esbugalhados e brilho incontestável, ouviu com atenção tudo o que Dona Zaninha disse. Todas as palavras lhe provocaram uma sensação diferente. Alegria, espanto, curiosidade, medo, amor, tristeza e mais aquela sensações que a gente sente, mas não encontra palavra para descrever. Sabe como é isso?

Enfim, quanto mais a menina olhava para Dona Zaninha, mais ela percebia a delicadeza e importância daquele momento. Porque se tem uma coisa que já é tradição no Brasil, principalmente nas cidades do interior, é a cultura popular. É, aquela mesma que é passada de pai para filho, de avô para neto e de neto para bicho, para planta, para a vida. Cultura popular, cheia de referências estéticas, poéticas e folclóricas. Cultura popular, que é o lugar exato onde o povo é mais povo e a vida pulsa mais forte, longe de inúmeras amarras éticas e morais.

E, adivinhem só? A cultura popular está viva e ainda pulsa apesar de toda a rapidez de informação, apesar da perda e do desinteresse das pessoas. Quando a peça acabou, Dona Zaninha foi-se embora e Suzana Nascimento voltou para conversar com a plateia sobre os processos de criação do espetáculo. Na volta de Suzana, a menina se deu conta da necessidade de manter a cultura popular viva, porque é ela que nos traduz enquanto povo, bem como é ela a responsável pela conservação da nossa memória coletiva popular fantástica, real e precisa.

Na saída, a menina, com o coração pulsando de alegria, agradeceu tanto a comadre Ana e ao compadre Paulo por terem trazido a peça e Dona Zaninha para cá, que só faltou beijar os pés dos dois. O sentimento, que não dá para traduzir em uma só palavra, foi mais ou menos assim: olhos marejados de água e no peito uma disritmia sem tamanho. Pelos do braço arrepiados e boca entreaberta, sem palavras, mas com um sorriso sem fim. Pensamentos mil e a certeza de que, se a cultura caminhar por esse caminho, certamente que ela estará andando com passos certos. É, talvez a palavra seja gratidão, encanto, paixão.

Resolvi esperar exatamente oito dias para escrever sobre essa experiência, porque a menina dos olhos esbugalhados é um ser que também habita em mim e que, há algum tempo, não se deixava reverberar. Demorei a compreender o real significado da minha menina ter aparecido por conta de um espetáculo popular. Em exatos oito dias, o nosso país se transformou em um caos letal e estamos beirando a insanidade e a incerteza de dias de comunhão com o amor e progresso. Em passados exatos oito dias, agora, parece que nos esquecemos do nosso passado desastroso, mandando a lição de nossa história para os ares e repetindo tudo com ainda mais pesar. Em exatos oito dias, perdemos os nossos alicerces e algumas de nossas certezas identitárias, nos transformando em um povo irracional, vagando no ermo da ignorância e da manipulação.

Espero eu, assim como a minha de olhos esbugalhados que reside em mim, que a magia da crença volte a pairar em nossos seres e que a cultura popular nos salve do esquecimento.

PS: Calango Deu! Os causos de dona Zaninha foi uma peça que esteve em cartaz nos dias 9 e 10 de março, aqui em Vitória da Conquista. A produção local ficou por conta da FMB Produções, nas figuras de Ana Claudite e Paulo Mascena. Foi o primeiro espetáculo teatral em que pessoas com deficiências auditivas estiveram presentes e contaram com um profissional de libras para “traduzir” a peça. Nunca, em toda a minha vida, pude estar presente em um momento tão emocionante assim e presenciar de perto a sensação de uma primeira vez de surdos dentro de um teatro.



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