Pipoca Moderna: Mulher, transexualidade e cinema

Por Mariana Kaoos

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A primeira vez que vi Nahla Valentina, foi numa escola de formação feminista que ocorreu aqui em Vitória da Conquista no fim de 2015. Pouco tivemos contato, mas eu a observava de longe, com certo ar de curiosidade e interesse. Nahla é uma menina doce, educada e extremamente atenta a tudo que a circunda. Estudante de cinema, signo de touro, olhar, por vezes, indecifrável, militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Nahla é uma mulher trans e, como toda mulher trans, ela tem que matar diversos dragões por dia a fim de se impor quanto ser social que merece respeito e que precisa de direitos, de políticas públicas que lhe assegurem segurança, saúde, dentre outras necessidades básicas.

Um dos relatos mais comoventes e fortes que tive o prazer de ouvir no ano passado foi o dela. Através de sua narrativa, de sua luta diária, percebi a urgência de se colocar no lugar do outro e lutar por uma transformação social que atenda e contemple as mais diversificadas formas identitárias. Percebi que, para isso, é preciso que haja uma disputa de espaços a fim de torna-los lugares de empoderamento, de emancipação. Para mim, jornalista, a minha principal disputa é pelo discurso. Para Nahla, talvez seja pelo cinema (que não deixa de ser um discurso) e suas representações.

Pensando nisso, a convidei para escrever um texto no dia de hoje, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, sobre a questão do feminino no cinema. Tenho muitíssimo respeito e, mais ainda, admiração por Nahla. Segue abaixo, suas impressões sobre o universo do audiovisual:

Estou sensível, chorosa e com hormônios flutuando pelo meu corpo de maneira louca. Sendo assim, pensando sobre o que achava importante falar neste dia e procurando referências, não consegui deixar de refletir sobre personagens femininas ao longo da história que vi desde criança e o papel que tiveram na minha construção enquanto mulher e ser humano, ser sociável, que pensa, interage e vive em meio a outros.

Fui ler algumas coisas que podem ser achadas aqui na internet e, no texto “Alguns personagens masculinos da Disney falam mais do que você imagina” (link: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-118924/), frases como “Todo mundo que está fazendo outra coisa, além de procurar um marido no filme, é um homem” chamaram a minha atenção. Como o audiovisual tem moldado a vida das mulheres e o que elas esperam obter?

Afinal, mesmo que eu sempre tenha tido mulheres fortes ou corajosas como exemplo e heroínas, como Xena e Gabrielle, Sakura, Hermione, entre algumas outras peculiaridades sobre meu gosto ao longo da vida, as mesmas também pareciam não ser capazes de se distanciar da ideia de sempre acabar se envolvendo com um homem, querendo se envolver com um ou até buscar isso em um ou outro momento. Essa questão que me assusta: o que mais temos por aí são filmes de romance melosos ou que forçam demais o riso que tentam gerar nas nossas mentes que nossa felicidade plena depende do amor – não qualquer amor, mas um amor de um homem.

Isso também afetou o meu crescimento. Eu poderia querer ser forte, bondosa, corajosa e ter uma vida relativamente independente, mas sempre vi um outro lado que tentava me dizer que a minha felicidade só seria completa se eu encontrasse “o amor da minha vida” ou algo parecido, sempre estaria no outro e não em mim.

 Não posso deixar de ressaltar que, sendo uma mulher trans, isso afetou ainda mais a maneira como me via e me vejo, como penso sobre mim mesma, como lido com as pessoas ao meu redor. Intensificou minha preocupação com a aparência e os padrões que nos são impostos, me fez pensar que eu nunca seria feliz, porque estar sozinha não era permitido e não ter um homem do meu lado, capaz de me compreender e respeitar enquanto mulher, não permitiria que eu tivesse uma vida satisfatória – mesmo que um dia conquiste tudo que almejo em outras áreas da minha vida.

A questão é justamente: o que o cinema tem ensinado para nós, mulheres, desde a infância? Sempre reconheci o papel do cinema e do audiovisual em geral como emissores de ideias e formadores de opiniões, mesmo em filmes do cinema maistream, que até podem ser produtos sem qualquer intenção além de movimentar dinheiro no mercado, mas ainda assim reflete os pensamentos que a sociedade de diversas formas tenta inserir na nossa cabeça todos os dias.

Não se trata de querer ou não um relacionamento heterossexual/afetivo, mas de como isso é colocado nas nossas cabeças. O quanto o audiovisual ainda nos traz uma ideia de submissão da mulher ao homem, reverbera a construção de um ser mulher que fala de delicadeza, gentileza, amor eterno, dedicação, disponibilidade, etc.

Ressalto a importância de, no Dia Internacional das Mulheres, percebemos o quanto a misoginia ainda é presente na nossa sociedade. Porque vejam só, durante todo o ano somos assediadas, inferiorizadas, exotificadas, objetificadas, agredidas e hipersexualizadas, mas neste dia, um dia histórico da luta das mulheres pela conquista de direitos e destruição do patriarcado, todas as mulheres (cisgênero, vale lembrar) recebem flores, bombons, mensagens de agradecimento e, na verdade, quando ouvem “Obrigado por ser tão bom para mim”, o que isso realmente quer dizer é “Obrigado por aceitar minha opressão para contigo de boca calada.”

Não tenho nenhum problema com histórias de amor, não é isso – e do jeito que ando, é o que mais tenho visto, fumando um cigarro no quarto e chorando com algum filme que já vi várias vezes ou livro que já li também até demais. O que me faz falta é representatividade. Quero ver mulheres trans interpretando mulheres trans – mostrando as diversas nuanças e realidades. Quero ver mulheres escrevendo sobre mulheres, dirigindo mulheres e fazendo personagens fortes em que suas histórias não se baseiem nos seus relacionamentos amorosos, mas em quem elas são, no que elas conquistaram. Que sejam fortes, livres, que nos encorajam a ser assim também. Porque queria ter crescido vendo isso de maneira que minha maior preocupação fosse minha independência, meu prazer pessoal com a vida, com as coisas que faço e quero fazer  e que relacionamentos estivessem em segundo plano.

Não sei vocês, mas, neste dia, não quero receber flores ou um “Feliz Dia das Mulheres”. Quero, em primeiro lugar, que reconheçam que esse dia também é meu, que ele inclua todas as mulheres, não só algumas. E, segundo, quero me sentir representada, encorajada, renovada para lutar por mim, lutar por nós.

Quero saber que a indústria cinematográfica é passível de mudanças e pode proporcionar histórias reais, conscientes e voltar a se preocupar com as ideias que passa, não mais ceder aos princípios mercadológicos do sistema capitalista. Porque sendo, inclusive, uma estudante de cinema, percebo mais ainda, compreendo todo o processo de construção e execução de um filme, o poder que ele tem de gerar pensamentos, discussões e transformar a sociedade de maneiras que, muitas vezes, são bem sutis.



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