Especial Salvador: Tudo o que move é sagrado

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Por Mariana Kaoos

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Ilhéus, metade dos anos 90: Fim de semana qualquer. A família era composta por uma mãe, um pai e uma filha. Uma mãe, um pai e uma filha que conviviam de maneira feliz e amorosa entre si. Naquele dia a mãe penteava os cabelos da filha e o pai terminava de se arrumar. Iriam levar a menina para fazer o seu programa preferido: Assistir uma peça infantil no Teatro Municipal de Ilhéus e depois andar de roda gigante no parquinho que há pouco se instalara na cidade.

A menina, como sempre, estava ansiosa. Com aquele frio na barriga e brilho no olhar, ela encaixava a sua mão direita na mão do pai e a esquerda na mão da mãe. Iam caminhando pela avenida, ouvindo o barulho do mar, passando por árvores, pessoas e calçadas de pedras brancas e pretas que proporcionavam formatos geométricos. Aí finalmente chegavam ao teatro e se dirigiam à bilheteria para garantir os ingressos da próxima sessão. A menina ficava excitada, correndo de lá para cá, querendo subir e ocupar os melhores lugares, que, para ela, eram sempre no meio.

(É importante ressaltar, para contribuir com a criação imagética do leitor, que o Teatro Municipal de Ilhéus é um ambiente pomposo, dos tempos áureos da cidade. Sua arquitetura é clássica e sua faixada nas cores bege, quase voltado para o amarelo, e branco. Já na parte de dentro, o chão é de madeira, assim como as escadas. As cadeiras, vermelhas e acolchoadas. No palco há uma cortina vermelha de veludo e seis entradas, três de cada lado, que dão acesso ao camarim e outras instalações).

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Aí finalmente chegavam. A menina sentava-se entre a mãe e o pai, sempre à espreita do próximo instante. Seu momento preferido era quando, do alto falante do teatro, saia o primeiro barulho da sirene. Era ouvir o pãaaa e a menina já começava a ficar nervosa. Na sequência, a sirene tocava duas vezes, sugerindo que as pessoas pudessem se acomodar. Por fim, vinha o terceiro sinal pãaaa pãaaa pãaaa que dizia que o espetáculo iria começar. Era nessa hora que a menina segurava a mão do pai de maneira forte. Quer dizer, ela segurava a mão do pai com a força que uma menina de cinco anos possuía.

Salvador, doze de fevereiro: Para uma menina de cinco, seis anos de idade, o universo se descortina diante de si muito mais através do lúdico, do sensorial, do que pela tomada de consciência racional acerca das coisas e dos ambientes sociais. Passados mais de vinte anos desde a minha primeira experiência com o teatro, fui compreender na noite da peça, que o meu momento preferido é o tocar das sirenes porque é nele em que há a escolha do entregar-se para o desconhecido. É nele que, como diria Clarice, podemos nos apossar do É da coisa. É nele em que as luzes se apagam e, por breves instantes, você caminha por um abismo ainda sem saber se vai sobrevoá-lo ou cair dentro dele.

Quando a terceira sirene ecoou pelas paredes do Teatro Solar Boa Vista e as luzes se apagaram, senti um frio na barriga. Procurei uma mão para que, como de costume, pudesse apertar. Contudo, compreendi que aquele instante, ainda que coletivo, era uma experiência unilateral para mim. Seria eu em confronto com o palco e este em confronto comigo. E ambos, quase como numa relação de simbiose, refletindo um no outro.

Quando o escuro tomou conta e o silêncio tornou-se absoluto, no palco, surgiu uma mulher. Mulher com um vestido branco, descalça, cabelos desgrenhados, envoltos de cachos. Como se nascesse pela sua vinda, uma luz vermelha alaranjada foi tomando conta do espaço ate que caiu sobre si. Foi nesse instante em que o rosto da mulher foi se levantando. De maneira intensa e precisa, elas nos encarou, com aquele rijo e duro olhar, abriu seus lábios e proferiu as seguintes palavras: “O meu útero é um campo de batalha”. Pronto. Nesse momento foi dado início a mais uma sessão do espetáculo Somos Todas Clandestinas.

Aqui, se faz mais do que necessário contextualizar um pouco: Somos Todas Clandestinas é um projeto artístico protagonizado por mulheres, jovens, feministas, que atuam nas suas mais diversas esferas culturais. Produtoras, fotografas, atrizes, web designes, escritoras, enfim, mulheres que acreditam ser possível disputar a cultura e utilizar-se dela como instrumento para uma transformação social através de uma nova consciência política e poética. O projeto nasceu em meados de agosto do ano passado, de maneira horizontal. Através de um longo período de imersão dentro das mais distintas vertentes do tema aborto, elas criaram uma peça, um monólogo, para trazer esse debate para dentro do teatro.

Colocaram a ideia dentro de uma plataforma web que possibilita o financiamento coletivo. Após alcançarem o objetivo financeiro, mandaram brasa: Ensaios abertos, divulgação via redes sociais e uma fértil temporada de verão no Teatro Solar Boa Vista, localizado no Engenho Velho de Brotas. Importante ressaltar que esse espaço é pensado, gerido e ocupado pela população negra das redondezas. O Solar Boa Vista ainda é um dos poucos espaços de resistência popular na cidade.

O espetáculo é denso e atiça os mais diversos sentidos da existência humana. Na noite de ontem, cara a cara com o conteúdo da peça, me senti incomodada, estarrecida, sensibilizada, provocada e consciente. A sensação foi mais ou menos aquela de, depois de um longo e profundo sono, abrir os olhos e sentir o despertar em meu ser. E me atentar a isso. Ainda que eu não tenha passado por nenhuma experiência abortiva, compreendi que o tema e seus percalços, no que ele avança, no que ele retrocede e o que ele significa na vida das pessoas, diz respeito também a mim, mulher, feminista, jornalista, agente transformadora social.

Maíra Guedes, a atriz do monólogo, é voraz, fatal. Ela dá vida a uma personagem sem nome e sem história (o que faz com que cada uma de nós, mulheres, nos encaixemos dentro dela) que transborda realidade, brutalidade e poesia o tempo inteiro. Através dessa personagem narrativas são contadas e alguns pontos como o papel do estado, a questão da saúde pública, o condenamento moral, ético e religioso, o patriarcado e o capitalismo são cutucados de forma inteligente e precisa. Somos Todas Clandestinas é uma pequena amostra, uma pequena analise social do papel da mulher na contemporaneidade.

Entretanto, o que mais me tocou, foi a fundo em mim, foram os momentos de silêncio. Os momentos de silêncio estarrecedor que gritavam através do olhar, do corpo e das expressões da personagem. Obviamente que as falas eram fundamentais, mas foi no silêncio vomitado em cima da plateia que a dor do tema tornou-se explicita e abundante. Outros pontos estéticos do Clandestinas também contribuíram para o entendimento os presentes acerca do aborto:

– A marcação de palco foi muito bem pensada. Maíra, através da personagem, se locomovia e o ocupava por inteiro. Apesar de haver uma única pessoa, o palco foi muito bem preenchido com o corpo da personagem e alguns elementos como cordas, um tamburete, uma panela e um cumbuca de barro.

– Somos Todas Clandestinas alia novas tecnologias junto a questão cênica. Em determinado momento do espetáculo, é utilizado projeções de imagens da cidade que dialogam com o silêncio e o corpo da personagem.

– O roteiro da peça, aliás, as falas da peça são interessantíssimas. Não apenas pelo seu conteúdo, visivelmente bem estudado, mas mais ainda pela cadência da narrativa. São palavras duras e, ao mesmo tempo, de uma poesia sem fim. Um determinado trecho em que a personagem fala em primeira pessoa com Deus (e que me lembrou Castro Alves ao evocar aos céus, em Navio Negreiro) é tão delicado e profundo e denso que me tirou lágrimas dos olhos e fez com que os pelos de meu corpo se arrepiassem.

– A única coisa que achei falha, talvez, tenha sido a trilha sonora. Na verdade ela é bonita, contudo, para mim, não pareceu dialogar muito com a intensidade da peça. Talvez, se trabalhada com instrumentos mais fortes, como o violoncello e o violino, ela se encaixasse melhor.

– Após o espetáculo o público participou de uma roda de conversa bacanérrima com Maíra e Iajima Silena, produtora da peça. Foi o momento em que a plateia, principalmente as mulheres, puderam colocar suas duvidas, anseios e inseguranças acerca do tema. Sobre isso, gostaria de fazer um alerta: Meninos, vocês podem participar sim. Porém, percebam que esse é um momento para que nós, mulheres, possamos falar sobre algo que NÓS sofremos na pele. Portanto, nos deixem protagonizar,. Alias, portanto, respeitem que somos nós as protagonistas do momento.

Quando o espetáculo findou-se, fiquei por volta de vinte minutos sem consegui falar. Inerte, chocada, estarrecida com o bombardeio necessário de consciência que adquiri naquele espaço. Certamente que, aos poucos, essa sensação foi passando e eu consegui raciocinar sobre a importância daquilo ali. Se aos cinco anos de idade, meus pais me levavam para assistir Os Três Porquinhos, em Ilhéus, e eu acreditava que aquele entretenimento era o melhor do teatro, certamente que hoje já não posso e não consigo visualizar como tal. O teatro pode e tem que ir além. Além do riso, além da dor, além de uma mera distração. Nada melhor do que acordar no outro dia e se auto questionar como serão as coisas agora que o despertar aconteceu. Tornar a fechar os olhos? Gritar aos quatro cantos das boas novas? Atuar só? Analisar de que maneira posso galgar coletivamente para a construção de um projeto político social que acredito?

Fui acordada por todos esses pensamentos hoje logo cedo. Como se fossem pequenas pessoinhas, eles cutucaram todo o meu corpo até que, ainda que meio contrariada, eu acordasse e lhes desse atenção. Tudo isso porque, a meu ver, o Somos Todas Clandestinas cumpriu o seu principal papel na noite de ontem: ser agente transformador. Parabéns a todas as envolvidas no projeto. Parabéns pela coragem, pela força, pela sensibilidade e pelo compromisso e respeito com o público e, principalmente, com nós, mulheres. Que venham mais. “Enquanto a chama arder…”.



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