Salvador: Especial Carnaval – É dona Janaína que vem

hey joe

Por Mariana Kaoos

“Escrever é se vingar da perda”. Wally Salomão

“Vá na maresia buscar ali um cheiro de azul…”. Djavan

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Quando vivemos uma experiência arrebatadora, intensa, apaixonante, ela traz em si um quê de tristeza e solidão. Um quê de tristeza e solidão no momento exato em que passamos por ela, pela experiência. Digo isso porque ela mexe tanto com os nossos sentidos, ela nos desperta tantas sensações que é triste o próximo momento. E o próximo momento sempre é de término. O findar-se do instante fugidio que já se tornou outro instante qualquer.

Aí, quando o próximo instante chega, ficamos atordoados. Pensando, maquinando, racionalizando tudo o que foi exposto e vivido. Ficamos atordoados ainda sentindo na pele os pelos se arrepiarem com essa ou aquela lembrança. Ficamos atordoados com esse frio na barriga que insiste em não passar e com esse vazio no peito, esse abismo, esse vácuo que se instalou desde o fim da tão voraz experiência.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

São essas as horas em que mais pinta a vontade de voltar no tempo e, uma vez voltando, de pará-lo por completo e viver para sempre naquele momento fértil e feliz. Quantas vezes já nos martirizamos, já nos pegamos exatamente com esse desejo, hein? Contudo, será que ele ainda permaneceria fértil e feliz se perdurasse por toda a eternidade? Será que a magia da coisa continuaria inabalável caso houvesse a possibilidade de viver sempre e sempre naquele recorte temporal?

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

A grande paixão do momento começou no final da tarde do dia primeiro e só foi terminar na noite de ontem, dois de fevereiro. A grande paixão do momento aconteceu nos festejos para Iemanjá, num dos maiores bairros boêmios de Salvador, mais conhecido como Rio Vermelho. A grande paixão do momento brotou em olhares, reencontros, música, artes plásticas e visuais e gestos e fala e fé. Como não possuo a máquina para voltar no tempo, me utilizo das palavras para criar uma narrativa onde a grande paixão do momento possa ser acessada sempre que a saudade pintar. E foi tudo mais ou menos assim…

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Iemanjá é a orixá das águas salgadas dentro de doutrinas religiosas como a umbanda e o candomblé.  Ela é a rainha do mar, mãe dos pescadores e dona de nossas cabeças. Iemanjá é forte e ao mesmo tempo delicada. É dura e sensível. É cuidadosa, amorosa, sábia. Inúmeras lendas, histórias são contadas com o seu nome. Ela é princesa das terras de Aioká. Casou-se com Oxalá, o traiu com Orunmilá. Gerou inúmeros filhos, dentre eles Oxóssi e Exú. Suas cores são o azul e o branco. Ela gosta de rosas, bem como espelhos e alfazema. Para saudá-la utiliza-se a expressão Odoya. Dentro do sincretismo religioso, na igreja católica ela é conhecida como Nossa Senhora Dos Navegantes ou Nossa Senhora da Conceição da Praia. Seu dia é o dois de fevereiro aqui na Bahia. Em outros lugares como Alagoas, o festejo ocorre no quatorze de dezembro.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Aqui em Salvador já virou tradição comemorar o dia de Iemanjá. Na verdade, o dois de fevereiro comporta uma das maiores festas de largo da cidade. Pessoas dos mais variados tipos ocupam o Rio Vermelho com o propósito da fé, mas também da diversão. É muita bebida, comida, música, paquera. E é também muita crença, presentes, oferendas levadas em barquinhos até o alto mar. Não seria loucura dizer que a Festa de Iemanjá consegue agregar mais de quinhentas mil pessoas.

Até certo tempo atrás, na noite do dia primeiro quem comandava o Rio Vermelho eram os vendedores ambulantes. Ali era o momento propício para que eles instalassem suas barraquinhas e ficassem a postos, prontos para a correria e loucura que seria o dia dois. No entanto, há mais ou menos quatro, cinco anos, as programações ofertadas para Iemanjá se iniciam junto com a arrumação do bairro.

No dia primeiro, por exemplo, teve show de Ava Rocha, Metá Metá e Marcia Castro no Lalá. Também rolou música no Irish Pub e em outros locais do bairro. Na praia o batuque comia solto. Baianas, adeptos do candomblé e fiéis de um modo geral se encontravam perto do mar, orando baixinho, agradecendo pelas graças concedidas, pedindo proteção para esse novo ano que se inicia.

Foi nesse instante em que tive a surpreendente constatação de que a vida é mesmo muito louca e nos encaminha para lugares inimagináveis ao lado de pessoas que jamais poderíamos supor estar presentes. Eu acredito fielmente nos preceitos do candomblé e, dentro dele, Iemanjá é minha mãe de frente. Já tem mais de sete anos que venho conferir de perto os festejos do dia dois de fevereiro e agradecer pela minha existência. Sempre fiz oferendas, bem como preces, mas nunca, nunca mesmo tinha passado por uma experiência como a de agora.

Eu estava na praia dos pescadores lado a lado com uma personagem de um livro de Chico Buarque chamado Calabar que, nesse verão, saiu das páginas impressas, virou gente, virou coisa palpável e adentrou com tudo na minha existência. Por falhas humanas e ruídos do coração já não nos falávamos mais. Contudo, como se fosse ironia, pirraça do destino, a vida nos colocou novamente uma diante da outra para nos provar, nos dizer algo que ainda não consegui descobrir exatamente o que é.

Enfim, já era madrugada e estávamos na praia caminhando. Outras pessoas também nos acompanhavam. Em determinado momento, decidimos subir nas pedras, onde algumas baianas estavam reunidas. Subimos. Eu e a personagem do livro de Chico. Com muito respeito e delicadeza,  ficamos paradas bem ao lado das baianas, só observando seus rituais, um pouco tímidas e receosas de atrapalhar algo. Foi quando, num gesto ímpeto e impulsivo, me dirigi a uma delas e pedi para que elas pudessem nos dar a bença. A baiana olhou para mim, olhou para nós, sorriu e nos mandou abrir as mãos.

Abrimos as nossas mãos e, ao invés de benção, o que recebemos foi arroz cozido. Outra baiana, uma senhorinha já de idade, disse para que o passássemos em nosso corpo, da direita para a esquerda, sem colocar na cabeça, e depois jogássemos o restante no mar. Assim o fizemos. Na sequência, nos foi dado pipoca e as instruções foram as mesmas do procedimento anterior. Depois foi a vez do milho branco, ovos e, por fim, da alfazema. Os nossos olhos estavam fechados e as nossas mãos abertas em direção ao mar. Havia um quê de magia naquilo tudo. Eu consegui sentir a força daqueles alimentos em meu corpo e, mais ainda, a energia que se formava quando eu os jogava na água. Uma das baianas, a senhorinha, recebeu uma entidade que, mesmo ela não estando no terreiro, acredito eu, tenha sido a própria Iemanjá. A mais jovem delas ficou cuidando da senhora, enquanto uma outra nos disse assim: “Agora chega perto do mar, deixa Iemanjá molhar vocês”.

Com cuidado para não cair nas pedras, demos as mãos, eu e a personagem de Chico e ficamos bem pertinho da arrebentação. A água chegou com tudo em nossas pernas deixando elas molhadas, com gosto de sal e cheiro de maresia. Agradeci, agradeci, agradeci a Iemanjá por cuidar de mim, por me conceder a dádiva da vida e a honra de ser uma das madrinhas de Antônio, o menino Deus que veio ao mundo agora em janeiro.

O mais incrível disso tudo foi que, na sequência, saímos das pedras e subimos as escadarias para comprar uma cerveja e depois voltar à praia. Assim que pisamos no último degrau, uma menina negra, magricela, de sorriso no rosto, pegou em minha mão e na mão da personagem de Chico, nos conduziu até a barraca de flores e pediu, “Tias, comprem uma flor pra eu dar para Iemanjá?”. Nos olhos da menina tinha doçura e amor. Você resistiria? Nós também não. Compramos a flor, compramos pirulito para ela e nos responsabilizamos diante de sua mãe, que estava montando sua barraca para vender cerveja e naquela noite iria dormir no chão, esperando o dia dois, que a levaríamos no mar e depois a traríamos segura.

Foi o que fizemos. Descemos para a praia com Alexandra que, ao pisar na areia se transformou. Ficou numa felicidade sem tamanho. Ela corria e nos chamava para brincar cheia de magia e inocência. Molhava os pés no mar, enchia as mãos de areia, pulava, gritava, se encantava com os fogos de artifício. Um amigo seu, chamado Lucas, que também deveria ter dez anos, sentou-se com a gente. Contudo, Lucas era bem diferente de Alexandra. Ele era calmo, sereno, observador. Apesar de ainda muito novo, ele trazia nos olhos uma melancolia, uma tristeza de quem tem vida dura e sofrida. Lucas comia um Pingo De Ouro e mirava o mar com uma expressão de cumplicidade. Era como se ele soubesse de todos os seus segredos.

Ficamos lá com eles por algum tempo que para mim foi medido em valor. Quando o dia amanheceu voltamos para casa. Dormimos, depois fomos, cada qual por si só, para a festa oficial, ocorrida ontem, no dois de fevereiro. As críticas negativas do festejo são basicamente as mesmas: insuficiência de banheiros químicos, imundice nas ruas, furtos, muito assédio sexual, violência, venda da ideologia da festa para a prática de um capitalismo exacerbado e frenético. As críticas positivas também perpassam pelos mesmos pontos de sempre: muitas apresentações musicais de qualidade, comunhão, povo feliz ocupando as ruas.

Se analisada dessa maneira, poderia dizer que a Festa de Iemanjá foi relativamente igual a todos os outros anos anteriores. Contudo, diferente das outras vezes, o momento foi ainda mais precioso. Através da crença, através da minha crença e da crença de outros seres presentes, pela primeira vez deixei de ver Iemanjá no mar e passei a observá-la, inteira e completa, em Alexandra, em Lucas, na personagem de Chico e em mim mesma. Apesar da tristeza, da melancolia e do vazio pela perda do momento que não é e sim foi, me encontro mais preenchida do que nunca, inundada de paixão pela experiencia vivida, com o meu orí cheio de mar. Odoya, minha mãe das águas.

– Essa matéria contém o apoio da Hey Joe Camisetas e Maxtour Viagens e Turismo



Artigos, Bahia, Cultura

Comentário(s)