Conquista: Canto do Sabiá e o Forró do Gonzagão

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Por Mariana Kaoos

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Madrugada de sexta para sábado. Ronco da cidade: Naquele momento havia uma briga épica no céu. O negrume, que se instalara durante toda a noite, tinha acabado de entrar em conflito com o Astro Rei que, mais uma vez, queria tornar-se soberano no espaço. Seus raios solares já apontavam no horizonte com total vigor e anunciava que era a hora das estrelas dormirem e do galo cantar. O negrume, por sua vez, não se deu por vencido. Parecendo aquelas crianças birrentas que quando vê que vai perder algo começa a chorar, relutou o máximo que pode, mas não teve jeito. Em suas beiradas outras cores foram sendo formadas como diversos tons de rosa, laranja e azul. Era a madrugada em Vitória da Conquista que findara-se, dando lugar a barra dia, cheia de promessas e recomeços.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Contudo, havia um lugar na cidade em que isso parecia não muito importar. Era um reino mágico governado por passarinhos e mais conhecido como Canto do Sabiá. O Canto era formado por uma planície de árvores e terra, onde se acendiam fogueiras todas as noites. Ah, também havia o palácio real. Diferente de todos os outros reinos, no Canto do Sabiá, o palácio ficava aberto ao povo, e seus camareiros, sempre atentos para servi-los da maneira mais educada e gentil possível. No palácio havia um salão de dança, uma cozinha imperial, de onde saiam os mais diversos quitutes e iguarias, um lavabo e uma câmara secreta que continha um sofá vindo diretamente das Índias e instrumentos de magia como câmeras fotográficas, pôsteres pregados na parede e instrumentos musicais que, através das suas ondas sonoras, causava um estado de torpor e alegria a quem os ouvissem.

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Foto: Maiêeh Sousa

Naquele instante em que a batalha celeste estava sendo travada e já era possível observar a ascensão vitoriosa do Astro Rei, cinco personagens permaneciam sentados na câmara secreta do Canto do Sabiá. Como se fosse obra do destino reuni-los, lá se encontrava um trovador conhecido como Sir Pedro Ivo, que percorria a mais longínquas terras cantando histórias de amor, um feiticeiro chamado Loro Vodoo que tinha em suas mãos o domínio do som. O feiticeiro podia unir, criar e transformar qualquer tipo de barulho em música e essa, por sua vez, se tornava soberana no ouvido do povo.

Quem também estava lá era uma bruxa da Daguerreotipia que congelava a imagem das pessoas em papel e as deixava mais bonitas. Também havia a personagem que era a mais personagem de todas: Saída diretamente das paginas do livro Cem Anos de Solidão, Remédios, A Bela, nos fitava com aqueles olhos amendoados, atenta, como se estivesse descobrindo um mundo doce, de encanto e paixão. Por fim, fechando o clube dos cinco, quem lá estava era uma escriba, com o pensamento avante, a fim de registrar os acontecimentos para a posteridade. Ironia do destino ou não, a escriba é justamente essa narradora que agora vos fala.

Todos estavam sentados no sofá das Índias e conversavam sobre os mais diversos assuntos. Em suas mãos havia uma bebida elegantíssima conhecida como cachaça de tamarindo, feita diretamente pelo rei do império, que também era alquimista e se chamava Sabiá. Da câmara era possível ouvir o que estava sendo tocado no salão principal. Do som real, saia uma batida de violão diferente de todas as outras batidas de todos os outros reinos de todos os outros universos. A batida era simples, limpa e extremamente profunda. Alguns a conhecem como bossa nova, movimento musical que surgiu no Brasil no fim da década de 1950. Então, para acompanha-la, algumas vozes angelicais entravam em harmonia: Nara Leão, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Toquinho.

Os personagens estavam ouvindo músicas como Ela É Carioca, Esse Seu Olhar, Chega de Saudade e transcendendo com todas elas. Foi um momento intenso, daqueles tão intensos que chegam a ser tristes, porque a gente sabe que, em breve, ele vai acabar. Um momento de descanso também. Descanso porque há algumas horas, os cinco personagens se encontravam no salão de dança, no meio da festa da noite. E como essa escriba também possui o poder de voltar no tempo através de suas palavras, segue aqui um breve relato do que aconteceu.

Era noite e o negrume reinava de maneira absoluta no céu. As estrelas apareciam lá no alto. Na planície do reino do Canto do Sabiá uma fogueira acesa aquecia os que estavam perto dela. Numa enorme e bonita mesa, os quitutes da noite estavam expostos, prontos para serem devorados. Bolo de milho, de fubá, amendoim, canjica, dentre outras variedades. Quem transitava perto da mesa, saia de lá com os olhos brilhando e a boca cheia d’água. Logo na entrava no reino, um bonito cartaz com o nome da festa da noite: Forró do Gonzagão.

Isso mesmo. Apesar dos festejos natalinos se aproximarem a cada novo dia, no reino do Canto do Sabiá o ritmo escolhido para a sexta feira, 11 de dezembro, foi o forró. Um cantador de responsa, conhecido como Paulo Barros decidira fazer uma releitura da obra do mestre Luiz Gonzaga, bem como de outros nomes engendrados no ritmo dançante. Ele falou com o rei Sabiá e este, prontamente, acatou o pedido. Apaixonado pela ideia gritou aos quatro ventos: “Lustrem seus sapatos e botem um sorriso no rosto, porque hoje aqui no reino, vai ter muito rala bucho e só entra quem for dançar até a sola cair e o pé doer”.

E foi bem assim que aconteceu. Para ajudar ao cantador, quem quisesse entrar na festa tinha que paga um valor de dez reais. Muita gente chiou na porta, dizendo que estava caro (e realmente estava) e que eram muitos, logo, seria mais vantagem deixar todos entrarem pela metade do preço. Como as ordens do cantador tinha sido rígidas e explícitas, seus capatazes foram firmes e não abaixaram a guarda. Só entrava quem realmente estivesse disposto a pagar os dez reais. Na fissura do forró, alguns decidiram encarar de frente o valor um pouco alto, e entraram no reino, a fim de se remexer até de manhã.

De fato, a apresentação de Paulo Barros e sua banda, lá no salão principal, foi mesmo muito boa. Luiz Gonzaga foi homenageado de maneira ímpar, e o povo dançou sem parar. Agora, ao contrário do que todo mundo possa imaginar, quem deu um show de ritmo foram alguns anciões. Vários deles deixaram os plebeus de queixo caído e as donzelas cansadas de tanto rodopio. Os anciões conheciam todas as músicas, bem como todos os passos. As mocinhas não ficaram um minuto sequer paradas no salão. Toda hora eram convidadas para dançar com este ou aquele par.

Isso ocorreu por boa parte da madrugada, até que o cantador Paulo se cansou e precisou finalizar a apresentação, até para que o público ficasse com aquele gostinho de quero mais e pudesse se planejar para a uma possível segunda edição. Aos poucos, o povo foi abandonando o reino, indo embora para suas casas, repousar felizes pela noite. Em determinado momento, o Rei Sabiá também não aguentou e se dirigiu ao aposento real. A música mudou de forró para bossa nova e foi ali em que a batalha do negrume e Astro Rei começou a ser travada, foi ali que os cinco personagens se reuniram e foi ali o instante principal que originou esse conto matéria.

A magia do reino do Canto do Sabiá é que lá é permitido que histórias como essa possam acontecer, de maneira natural e envolvente. Os encontros tornam-se reais e são sempre acompanhados de música boa, bebida boa e sorrisos mil. Não posso falar pelos outros personagens em questão, mas essa escriba que vos fala já se encontra ansiosa para um retorno ao reino e para as surpresas que por lá possam acontecer.



Cultura, Vitória da Conquista

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