Conquista: Mulheres libertárias, feministas e revolucionárias

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Por Mariana Kaoos

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Lá pelo fim da década de 1960, Gilberto Gil, totalmente imerso em processos tropicalistas, compôs uma canção intitulada Barato Total. Na verdade ele é apenas o compositor, quem gravou a música foi Gal Costa em 1974 no disco Cantar Cantar. Barato Total narra um pouco dos processos, dos pequenos detalhes do cotidiano que nos dão alegria em estar vivo e que, por vezes, passam despercebidos em nós. Eu começo essa matéria opinativa falando dessa música específica porque o fim de semana pode ser resumido em uma de suas frases: “Quando a gente está contente nem pensar que está contente a gente quer. Nem pensar a gente quer. A gente quer, a gente quer é viver”.

Esse trecho se encaixa perfeitamente porque eu vou começar a falar da Primeira Escola de Formação Feminista que rolou esse fim de semana em Vitória da Conquista. Então vai lá: Aqui no Brasil e em mais diversos outros países existe uma organização autônoma conhecida como Marcha Mundial das Mulheres. A Marcha tem como principal objetivo reunir mulheres para conhecer, discutir, lutar e colocar em prática o feminismo. Mas pera aí, pera aí. Ao contrário do que muitos pensam o feminismo não é essa ideia coletiva deturpada de que as mulheres querem ser melhores que os homens, ou extingui-los, ou qualquer coisa do tipo. Na verdade o feminismo é um movimento político ideológico cultural que tem como principal objetivo a luta pelos direitos das mulheres e a igualdade de gênero em todas as esferas da sociedade.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Sendo assim e assim sendo, a Marcha vem juntando essas mulheres das mais diferentes etnias e proporcionando a elas a vivência de dois conceitos fundamentais. Um deles é denominado como sororidade e significa quase que uma irmandade entre nós. Sororidade é quando a gente se coloca no lugar da outra e percebe que, ainda que ocorra em diferentes proporções, todas sofremos violência física e psicológica, abuso, discriminação, enfim, todas sofremos do machismo e do patriarcado estabelecidos socialmente e, portanto, devemos nos unir na mesma causa, ao invés de provocar um sectarismo interno. O outro conceito é o lindo e maravilhoso empoderamento. Devo admitir que esse é o meu preferido porque ele traz como significado a conscientização, a participação e a protagonização das mulheres nas lutas e nas causas sociais. Uma mulher empoderada é aquela que é forte e sabe dos seus direitos e tem consciência e ocupa espaços e luta contra todas as formas de opressão que sofre.

Foto: Maiêeh Sousa
Foto: Maiêeh Sousa

Aqui em Conquista temos um núcleo da Marcha Mundial. Ele se chama Maria Rogaciana e reúne mulheres com suas mais diversas vivências, formações, perspectivas. Cada uma de um canto, cada uma com seus sonhos, com seus interesses, mas juntas em torno de um mesmo proposito: o propósito feminista. Depois de muito estudarem, se reunirem e planejarem, eis que elas produziram um dos encontros mais bonitos que já fui nos últimos tempos. É aqui que entra a Primeira Escola de Formação Feminista. Ela começou na sexta-feira, 27 e terminou ontem (domingo), 29. Durante um fim de semana intenso, ficamos todas imersas no Colégio Abdias Menezes estudando, ouvindo, trocando conhecimentos e pensando de que forma podemos protagonizar a luta por uma sociedade mais justa e igualitária.

E tipo assim, foi lindo. Quem veio para cá foi Nalu Faria, integrante da Coordenação Nacional da Marcha Mundial das Mulheres. Nalu é uma senhora que milita há exatos trinta anos a favor da causa feminista. Ela é mãe, mulher e detentora de uma simplicidade e conhecimento inigualáveis. Nesses três dias Nalu trocou conosco uma serie de vivências, nos apresentou outros tantos temas e construiu com a gente (e quando eu digo a gente eu me refiro às mais de 200 mulheres presentes no evento) novos pensamentos e novas demandas para tocarmos nas nossas vidas a partir de agora. Passamos por uma conjuntura do papel da mulher na nossa sociedade contemporânea, entramos com tudo na divisão sexual do trabalho e no patriarcado, traçamos um histórico das mulheres ao longo dos séculos e compreendemos o que é um feminismo popular, quais as suas necessidades e como podemos atendê-las.

Para além disso, nos horários livres, conhecemos umas às outras. Fizemos massagem, limpamos o espaço, almoçamos e jantamos juntas, tomamos cerveja na cultural, nos sensibilizamos com as histórias contadas, cochilamos, dançamos, batucamos e deixamos de ser mulher para nos tornarmos mulheres. Isso mesmo. Cada uma no plural. Mulheres mais conscientes, mais empoderadas, mais certas de qual é e de como seguir o nosso objetivo em comum.

Uma dessas mulheres presentes no encontro se chama Alessandra. Mais conhecida como Aleh. Aleh é negra e tem 25 anos. Mora num bairro periférico da cidade e cursa ciências sociais numa universidade pública. Nos conhecemos ambas aos 15 anos de idade. Eu estudava na Sacramentinas e ela no Abdias Menezes. Entre tantas diferenças gritantes entre nós, ficamos encantadas uma pela outra e nos tornamos amigas. Na época ela era meio roqueira, quase que uma espécie de emocore. Passamos nossa adolescência juntas e, nela, descobrimos os medos e as dores uma da outra. Deixamos de ser meninas e viramos mulheres. Cada uma com suas perspectivas e percepções de existência. Cada uma travando suas próprias batalhas.

Nesse fim de semana vi uma Aleh como nunca tinha visto. Ela estava radiante, com cachos no cabelo, assumindo sua negritude, consciente de quem ela é e quem ela pode e quer vir a ser. Aleh estava totalmente empoderada e certeira no papel que quer assumir na sociedade. Sua doçura, seu riso frouxo e sua delicadeza não desapareceram, mas junto a eles, ela adquiriu uma força nas palavras e um brilho ávido no olhar. Aquele brilho que só pessoas apaixonadas e persistentes no que acreditam possuem. Vi minha amiga batucando, discursando, reunindo a mulherada, expressando suas opiniões, dando seu depoimento de vida, de dor e de luta para todas nós. Vi minha amiga com um desejo insano e louco de liberdade, de construção, de luta. Vi minha amiga cheia de orgulho de si mesma. E por fim me vi, cheia de amor no peito, chorando e orgulhosa olhando para ela e impressionada com a mulher forte e linda, mil vezes linda, que nesse momento ela é. Certamente que isso tudo foi graças à inserção do feminismo em sua vida e da sua aceitação de si mesma.

Contudo, o meu orgulho, o meu encanto não foi direcionado apenas para Aleh. Vi Clara com suas falas precisas e seu jeito leve de ser e passar isso para as pessoas. Clara que estudou comigo no ensino médio hoje é mulher a procura da sua independência, faz mestrado na Ufba em Ciências Sociais e tem como objeto de estudo a questão das mulheres e do feminismo. Vi Rose, extremamente inteligente, que me confessou que já tinha um bom tempo que não voltava para casa porque passou um mês em Brasília construindo a Marcha das Margaridas, depois foi para Ilhéus auxiliar alguns debates políticos e agora estava aqui, ocupando espaço e contribuindo para o encontro.

Vi Marcela, mãe de dois filhos lindos. Mulher sofrida, forte e inevitavelmente apaixonante. Foi a primeira vez de Marcela num encontro feminista e em todos esses temas que nos dizem respeito. Vi Marcela chorando do rosto inchar, depois vi Marcela sorrindo pelo momento presente e por fim vi Marcela modificada. Na tarde de ontem ela parecia já ser outra mulher, mais forte, mais atenta, mais rica em conhecimento, bem como em certezas do que quer para si.

Vi várias e guerreiras mulheres. Vi varias e guerreiras mulheres com suas histórias totalmente modificadas pelo feminismo. Vi várias e guerreiras mulheres utópicas, afim de colocar a mão na massa e berrar e ir atrás, com luta e convicção pelos seus direitos, acreditando na capacidade de uma transformação social onde haja mais fraternidade e respeito entre as pessoas. Vi isso tudo e ganhei o meu fim de semana. Agora eu realmente posso dizer que estou ainda mais rica. Ainda mais rica de sonhos, de desejos, de vontade e de companheiras.

Se o fim de semana pode ser resumido em uma frase de Barato Total, essa segunda feira (e todos os dias a partir de agora) precisa se inspirar em outra canção, também tropicalista, dessa vez de composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil. A canção se intitula Divino, Maravilhoso e diz mais ou menos assim: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. E é isso, a luta não para e amanhã tem mais. Nessa terça-feira, 1 de dezembro, haverá uma reunião às 19 horas, da Marcha Mundial das Mulheres para discutir algumas pautas e as novas demandas que surgiram. O encontro será na Casa Dois de Julho, no Alto Maron e todas as mulheres estão convidadíssimas a comparecer e entrar na luta. Seguiremos em marcha, até que todas sejamos livres!



Cultura, Vitória da Conquista

Comentário(s)


2 responses to “Conquista: Mulheres libertárias, feministas e revolucionárias

  1. Mari,

    Muito bom seu texto! Esclarecedor, inteligente e emocionante…
    Parabéns! Que o movimento cresça e se fortaleça. Participarei de tudo que for possível!

    Luciana Nery

  2. Graças a Deus pelo encontro, pelas intenções e pelo que ainda vai acontecer a partir dele. Essa luta é de todas nós!

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