50 anos do Golpe Militar: entrevista com o historiador e advogado Ruy Medeiros

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Na última semana foi lembrado o aniversário de 50 anos do Golpe Militar, o Sindicato dos Bancários de Vitória da Conquista e Região conversou com o advogado e historiador Ruy Medeiros sobre os principais fatos ligados ao período, e também sobre sua experiência como militante durante o regime. Confira a entrevista que o Blog do Rodrigo Ferraz reproduz abaixo:

01 – Como a ditadura militar influenciou a atual conjuntura política brasileira?

Quando se fala na influência na atual conjuntura, nós devemos examinar, sobretudo, a herança que o regime militar deixou para o Brasil quando ele foi suplantado. Que herança foi essa? Ele nos deixou com uma economia fortemente desnacionalizada, uma inflação elevadíssima, maior do que a que estava no governo João Goulart; um endividamento externo enorme; e uma sociedade em que os direitos sociais como a saúde não existiam.

Não conseguiram manter um sistema de saúde tão expansivo quanto o sistema atual, ao contrário disso, relegavam o direito à saúde expressamente para aqueles que tinham carteira assinada e o cartão do chamado Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), enquanto o restante da população era tratada como se fosse mendiga do ponto de vista da saúde.

A educação presenciou uma transformação natural do ensino, com um padrão e diretrizes educacionais que não tinham assim um caráter popular e democrático. Durante a época da ditadura houve os ensaios de uma politica de alfabetização, principalmente da alfabetização de adultos pelo MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), em que as pessoas eram alfabetizadas e pouco tempo depois não sabiam operar os instrumentos que adquiriram, como s instrumentos de leitura, saber somar, dividir, multiplicar, etc.. Então, o ensino superior era bastante modelado por ideias apenas tecnocráticas.

Quando o país foi redemocratizado, ele teve que lutar bastante para reverter a inflação deixada pelos militares, para expandir de uma forma mais ampla os serviços de saúde e de educação, e tentou reverter (mas ainda não conseguiu totalmente) o caráter da educação, que é ministrada especialmente no ensino superior e no ensino básico.

A ditadura deixou um endividamento externo elevadíssimo, em que a democracia burguesa atual teve que lutar, partir dos governos de Fernando Henrique, e sobretudo a partir do governo Lula, convivendo com o endividamento que consumia uma grande parte do orçamento brasileiro, fazendo com que não houvesse recursos suficientes para outras atividades governamentais, principalmente nas áreas social e de infraestrutura. A ditadura foi estabelecida dizendo que o governo João Goulart era de alta carestia, de inflação alta, de grande endividamento, e era um governo que não tinha condições de defender a economia nacional nem de programar a infraestrutura. Com isso se estabeleceu uma ditadura que modernizou a agricultura, porém com uma grande concentração da terra; modernizou o parque industrial e algumas obras de infraestrutura importantes, porém com uma grande concentração da renda.

02 – O que caracterizou a política do chamado “milagre econômico”, que foi a fase em que a ditadura teve a fase de maior desenvolvimento econômico? 

Foi a expansão do crédito, que favoreceu a expansão dos bancos e também uma grande concentração de renda, somada ao fato de uma grande compressão de salários, o arrocho salarial, exceto para aqueles executivos das grandes empresas. De outra forma, convivendo com compromissos feitos com serviços de dívida, que terminaram criando obstáculos para os governos futuros. Mas sobretudo você vê que aquela expansão se dá com a venda de capitais estrangeiros ou a desnacionalização da economia.

03 – Podemos dizer que chegamos de fato à democracia? Os políticos estão fazendo um bom uso desta democracia, respeitando o cidadão? 

A democracia é um processo. Não existe uma democracia completa, ela vai se aperfeiçoamento. E você vive sob os marcos da chamada democracia burguesa. É evidente que nós temos uma liberdade de imprensa assegurada, direitos individuais em grande parte assegurados, mas outros, entretanto, desrespeitados pelos agentes do Estado. Uma segurança concebida, não do ponto de vista de uma politica social de segurança, mas uma segurança bastante repressiva e territorializada.

Portanto, ainda dentro dos marcos daquilo que existia dentro da ditadura militar, é evidentemente que se tem alguns ganhos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha, as cotas nas universidades e agora no serviço público para os grupos étnicos. Você possui hoje uma expansão do serviço de saúde e da educação, embora a qualidade da educação esteja bastante a desejar e para algumas pessoas que vão à escola, a educação parece um logro, as pessoas não se sentem realizadas.

É evidente que houve ganho. Quando se fala do Código de Defesa do Consumidor, é um ganho. Quando se fala em estatuto do idoso, o atual código civil é um ganho; a própria Constituição foi um ganho. Mas ainda temos marcos de uma democracia burguesa. É preciso naturalmente um grau bem mais elevado de igualdade material, não apenas dessa igualdade perante à lei e dessas políticas afirmativas. É preciso ir além disso.

 

04 – O sr. viveu o período da ditadura e sofreu as repressões da época. O que mais te marcou? O sr. chegou a acompanhar a cassação do ex-prefeito Pedral Sampaio e a morte do então vereador Péricles Gusmão, morto em maio de 1964? 

Na verdade muitos conquistenses passaram por dificuldades. Havia aquela estrutura da família antiga, em que o chefe de família era também o provedor. Uma pessoa presa significava a família passar por extremas dificuldades. E algumas pessoas foram presas, suas famílias precisaram ser socorridas pelo círculo de amigos dos maridos, pessoas que se solidarizavam.

Então, prisões de pessoas pobres ou ‘remediadas’ atingiram profundamente não a própria pessoa, sendo alguns dos quais perderam empregos e tiveram prejuízos em suas atividades econômicas e dificuldades em encontrar um novo emprego, mas também aquela dificuldade de não poder, enquanto estava preso, tocar seus negócios, suas atividades que lhe davam condições de sobrevivência.

Algumas famílias realmente amargaram em Vitória da Conquista naquela época. Foi difícil a manutenção dos familiares de Péricles Gusmão, pois ele deixou a mulher e filhos pequenos. Ele era vereador, tinha atividade econômica, então era uma situação terrível. No caso de Pedral, que teve o mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez anos, significava uma limitação muito grande não participar das atividades políticas, não ser candidato, etc..

Agora quanto à minha situação, eu tive atuação contra o regime militar desde o início. Eu era estudante, participei muito de movimento estudantil. Sofri detenções, uma prisão por 30 dias, tive minha matrícula cassada e fui expulso na Universidade Federal da Bahia. Sendo expulso da Ufba fui expulso também da residência universitária, do restaurante universitário, e logo depois perdi um emprego precário que tinha no Estado. A sobrevivência foi muito difícil nesse período em que eu era estudante. Continuava militando, fazendo atuações clandestinas contra a ditadura militar, mas com grande dificuldade para sobreviver, porque ninguém dava emprego a uma pessoa que tinha sofrido com a ditadura militar e que tinha sido preso naquela época.

Logo após eu ter sido expulso do curso de Direito da Ufba a vida se tornou muito difícil. Para voltar a estudar, eu tive que passar um tempo sem estudo, porque a ditadura não permitia. O Decreto Lei 477 estabelecia um prazo durante o qual a gente não podia retornar ao ensino superior. Depois, por uma interpretação desse decreto, começaram a dizer que podíamos retornar, desde que fosse para escola particular. Então eu retornei para a Católica e tive que pagar ganhando muito pouco, ensinando em cursos supletivos e pré-vestibular. Depois de formado voltei para Conquista, e aqui comecei a advogar para trabalhadores urbanos e rurais, posseiros, mulheres e também durante um período jovens aqui eram muito perseguidos pela policia.

Em 1973 eu fui preso e respondi a processo perante a auditoria militar. Os civis que cometiam os chamados delitos de natureza politica eram julgados por militares, e preso em 25 de maio eu comecei a sofrer torturas que hoje em dia são divulgadas, aqui em Vitória da Conquista onde fui preso. Era uma área rural e depois no prédio do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que hoje se chama DNIT – antes era o DNER, e depois fui levado a Salvador, para o forte do barbalho, que era o centro de torturas na Bahia. Foram torturas não só de murros que eu havia recebido com o ‘soco inglês’, mas também muitos choques elétricos, totalmente preso ao pau de arara com choques em todas as partes do corpo.

Quando os torturadores sentiam que eu podia morrer, os torturadores me davam um descanso, e a cada sessão de torturas – e isso demorou de 13 a 15 dias, eu saía sem condições de andar. Saía me arrastando ou amparado por pessoas do aparato militar da ditadura. Eles queriam informações sobre a atividade clandestina, especialmente sobre pessoas que atuavam no PC do B.

Eu tenho uma grande alegria em minha vida. A tortura não alegra ninguém, nos abate e acaba nos marcando fortemente. Mas há uma coisa de que eu tenho uma grande honra: em decorrência da minha prisão, nenhum militante foi preso. E eu havia sido dirigente estadual do PC Do B, dirigente municipal de Salvador do PC do B, e tinha contatos dos militantes do PC do B de Vitória da Conquista, alguns dos quais meus amigos, e nenhum militante caiu em consequência da minha prisão. Nenhum. Isso é uma coisa que me honra como militante politico, e isso as pessoas sabem exatamente como aconteceu.

Eu mesmo fiz a minha defesa, pois na época eu já era advogado, fui perante a auditoria militar e consegui minha absolvição mostrando as contradições no processo, a insuficiência de provas. Fiz minha defesa e quando o procurador da Justiça Militar recorreu para o superior tribunal militar eu fiz as contrarrazões. Eu era um advogado recém-formado, a vida depois se tornou mais difícil. Consegui ensinar, e tinha a esse tempo da prisão um cargo na Prefeitura Municipal de Conquista, como Procurador Jurídico. O governante era um homem de esquerda, Jadiel Vieira Matos.

Quando voltei Jadiel não me demitiu, mas ocorreram as pressões. Optei por pedir a exoneração, diante dessas pressões contra ele, e chegamos a um consenso que ele devia exonerar e não colocar o próprio cargo dele e de outros secretários em risco. Então a situação a partir daí se tornava mais difícil, porque um advogado pobre, novo, recém-formado e comunista. Como conseguir clientela nessa situação, numa cidade pequena? Já era uma cidade que exercia influencia sobre outras cidades, isso era evidente, mas ainda era atrasada. A eleição de Jadiel naquele contexto era um verdadeiro feito dos democratas de Vitória da Conquista naquela época, exceção na Bahia.

05 – Em relação à Comissão da Verdade em Vitória da Conquista, como estão as investigações? 

Por enquanto a comissão da qual eu faço parte vem tomando depoimentos. Depois nós queremos ver se em convênio com outras comissões – já existe algum acordo de colaboração técnica da Assembleia Legislativa, se conseguimos documentos que investiguem o caráter dessas prisões, a repercussão disso no âmbito dos atingidos e das suas famílias, e sobretudo ver a situação de Péricles, que como todos sabem, foi preso e encontrado morto numa cela, e aparece no registro de óbito a causa da morte como suicídio. Muitos tiveram essa versão do suicídio, ou que jogaram debaixo do carro ou que pularam da janela do segundo ou terceiro andar. Versões de suicídio não faltaram. Então se precisa examinar essa situação, especificamente de Péricles Gusmão aqui em Vitória da Conquista.

 

 



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