O Golpe e a província: desdobramento de 64 em Conquista

cidade verde

Matheus Silveira Lima –  professor de Sociologia e Ciência Política da UESB

Untitled-1É fato conhecido que o Golpe de 64 que defenestrou Jango na madrugada de 1 para 2 de Abril repercutiu por quatro décadas em Vitória da Conquista. Salvo engano, trata-se, junto a Ilhéus, das duas únicas cidades do interior da Bahia que teve seu prefeito e alguns vereadores cassados. Um deles, Péricles Gusmão Régis, foi morto nas dependências do Batalhão da Polícia Militar e em seguida sustentada a versão de que cometera o suicídio, o que a família, com fortes evidências que aqui não caberia explicitar, nega com veemência. As tragédias do AI-5 e do assassinato covarde de Vladimir Herzog tiveram portanto precedentes em Conquista, o que ajuda a confirmar a máxima de Octávio Mangabeira de que “todo acontecimento absurdo, teria uma precedente na Bahia”. Mas não só dos precedentes ruins viveu a pólis mongoió em todo o transcurso di período ditatorial, pois houve também os notadamente positivos, como veremos.

Em 1979 o pensador marxista Carlos Nelson Coutinho publicava “A democracia como valor universal” na importante Revista “Encontros com a civilização brasileira”, texto expressivo da mais alta capacidade reflexiva da esquerda brasileira sobre o tema, apontando caminhos para o socialismo e à esquerda de modo geral. Em Conquista o precedente já estava aberto há quase dez anos, através de uma geração de homens públicos que retomava com firmeza o seu programa de lutas combatendo a ditadura com doses homeopáticas de democracia e minando o regime paulatinamente. Mesmo sabendo que a espera seria sofrida, a queda do regime seria inevitável.

A título de apresentação cabe registrar primeiramente a liderança do ex-prefeito José Pedral Sampaio, que mesmo sem mandato, cassado junto com seus direitos políticos, continuava sendo o homem de proa da política na região. O militante do movimento estudantil Elquisson Soares, presente como liderança importante na Marcha dos Cem Mil em 1968 e na década seguinte, eleito vereador, deputado estadual e federal, perfazendo 20 anos ininterruptos de vida

Finalmente, o corajoso médico de trejeitos Sertanejos, Jadiel Matos, eleito prefeito e exercendo integralmente seu mandato (1973-1977) e no ano seguinte eleito deputado estadual. Viriam depois Raul Ferraz e Sebastião Castro e tantos outros consolidar em Conquista a intransponível barreira oposicionista ao representante maior do Golpe de 64 na Bahia, Antonio Carlos Magalhães que, com um breve intervalo de quatro anos (entre 1987 e 1991) governou o estado por quase quarenta anos sem, no entanto, ter vencido uma eleição em Conquista a partir de suas próprias [e imensas] forças.

Tal fato se explica pela particularidade do gosto que o povo de Conquista sempre teve pela participação na vida política da cidade e que foi ampliada com a mordaça imposta pelo Regime de 64. A volta dos partidos e das eleições na década de 1970 abriu flancos para o combate silencioso, articulado e sereno contra o regime. O Movimento Democrático Brasileiro, depois tornado partido, o PMDB, encontrou solo fértil em Conquista. A ditadura que havia endurecido o regime desde 1968 quando amplificou o inimigo encastelado na luta armada, só cederia terreno quando começava a ficar claro em todo o país que as forças civis avançavam, e como o faziam dentro do jogo democrático, tornava-se possível retomar o rumo e ocupar destemidamente os espaços da política; no parlamento; na imprensa; nos sindicatos.

Desse modo, muito possivelmente, nenhuma cidade brasileira de porte médio foi tão afetada pelo regime de 64, sabendo também reencontrar-se consigo mesma e com sua história, quanto essa cidade de nome redundante, encravada entre o sertão e a mata. A seqüência de fatos levaria a sucessão, desde a anistia, da volta de Pedral para um mandato de 6 anos, entre 1983 e 1989 e, depois, eleito mais uma vez, para o mandato entre 1993 e 1997, dessa vez apoiado, estranhamente, por ACM. Era o fim do pedralismo, a unção do petista Guilherme Menezes, que já havia sido candidato em 1992 e que na eleição seguinte soube conduzir o destino manifesto oposicionista da cidade, fazendo mandatos sucessivos até o momento presente, intercalado pelo correligionário, José Raimundo Fontes, entre os anos de 2003 e 2009.

Nessa sequência de fatos a cidade sempre tomou o lado correto, o da desconfiança com a discricionariedade do poder excessivo. Chega a dar-se ao luxo de sentir saudades de ser oposição ao se “desalinhar” com os Governos de Jacques Wagner e de Lula nas eleições de 2010 e impor duas derrotas à Dilma Roussef nas eleições de primeiro e segundo turno em 2010. Caso praticamente único dentre as grandes cidades do nordeste e que lhe granjeou algum fama na conjuntura daquelas semanas eleitorais.

Por tudo isso, é importante relembrar que a cidade sofreu a morte precoce de Péricles Gusmão e da cassação inclemente de José Pedral, mas soube retomar seu destino ao entregar o poder na cidade aqueles que como Jadiel Matos e Raul Ferraz não compactuavam com a perseguição e com a tortura. Trouxe Pedral de volta e o derrotou quatorze anos depois quando achou necessário.

A cidade pode olhar o passado sem medo, sem rancores ou ressentimentos, mas, briosa de saber exatamente o que ela, em essência foi e como se conduziu no período mais difícil da história do país. Pelas instituições que consolidou e fazendo uso do espírito democrático que permeia a missão de seus homens públicos, teve a felicidade de assistir em outubro do ano passado, em solenidade proposta pelo vereador Florisvaldo, do PT, em tese um adversário da memória de Pedral, a devolução simbólica de seu mandato interrompido em abril de 1964. Lá estavam presente na Câmara de Vereadores o próprio Pedral, já quase nonagenário e também do atual perfeito Guilherme Menezes. Esse momento foi simbólico, pois desde então foi se como em Conquista já pudéssemos a partir dali dizer que o ano de 1964 finalmente acabou.



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