Sétima Arte em Destaque: Ferrugem e Osso

Por Gabriel José – Estudante de Cinema da Uesb

Osso e Ferrugem

Quando o amor se faz pleno, esse sentimento é capaz de enfrentar as dúbias convenções morais e sociais, destituir tradições e desonrar mandamentos em prol de que duas pessoas possam se amar livres de qualquer empecilho. Em Louca Paixão (Turks Fruit, 1973), obra seminal que apresentou o cinema de Paul Verhoeven para o mundo, é a extrema exemplificação imagética da força de duas pessoas que se amam sem medidas, à flor da pele, sem se importarem com as coisas e pessoas que as rodeiam, enfrentando o mundo e se isolando dele por meio da paixão irrefreável que os destroem.

O caminho que casal de Ferrugem e Osso percorre é justamente o contrário do que é presenciado em Louca Paixão. No filme de Jacques Audiard, os dois personagens, que a principio não se conhecem, se encontram a ponto de se autodestruírem, em um doloroso declínio, ora físico, ora emocional, que desmorona sobre eles, seja de forma trágica ou por falta de adequação a uma vida não realizada, e que só não os implodem por que eles se encontram e resolvem se ajudar de forma mutua, sem exibirem qualquer sentimento de lástima ou comiseração um pelo outro. E é no inesperado, onde as ações se tornam aprazíveis e a vida volta a ser aceitável, que o amor nasce tão sem medidas quanto no filme de Paul Verhoeven, mas, ao invés de destruí-los, será a força motriz para que ocorra a redenção dos seus mundos tão devastados Ferrugem e Osso” é um filme forte e igualmente marcante, que poderia muito bem representar a França no Oscar 2013 .

 

Isso é, se não fosse um pequeno grande empecilho em seu caminho chamado “Intocáveis”, a maior bilheteria do ano em seu citado país de origem, e o escolhido para uma vaga na categoria de melhor filme estrangeiro. Seja como for, a obra do diretor Audiard é garantida de agradar mais a alguns cinéfilos, do que o agradável e excelente “Intocáveis”.

Ciente das frágeis vidas a serem filmadas, Jacques Audiard guia a trama sem pressa, de forma eloquente, com o desenvolvimento dos personagens sendo cuidadosamente construído aos poucos, na medida certa, no tempo certo onde, já habituado em retratar pessoas solitárias, o cineasta francês expõe com precisão o vazio e a agonia que permeiam o casal protagonista.

E o primeiro protagonista a nos ser apresentado é Alain – Matthias Schoenaerts, hábil em passar as emoções do personagem de forma forte e serena -, que, encarregado de cuidar do seu pequeno filho, tenta reerguer sua vida em uma nova cidade. Tendo esperanças em ser novamente um boxeador profissional, Alain vai participando de lutas clandestinas, por prazer e pelo dinheiro, enquanto trabalha em empregos temporários como vigia. E é em um desses trabalhos que ele conhece Stéphanie, – Marion Cotillard em um incrível trabalho de verossimilhança – uma treinadora de baleias cujo casamento se encontrava em ruínas.

O encontro é rápido, quase não deixa marcas, e se não fosse o terrível acidente que acomete Stéphanie, talvez aquelas duas vidas não voltassem a se encontrar.

Mas uma impulsiva ligação os coloca novamente em contato. O egoísmo ingênuo de Alain, que pensa apenas em si próprio sem perceber que sempre magoa alguém, ajudará na recuperação de Stéphanie, na sua vontade de viver e na forma como encara a sua feminilidade diante da nova condição em que se encontra, por ele não sentir compadecimento dela, originando assim uma relação sem pudores. E a força de vontade dela cuidará das cicatrizes e das limitações emocionais de Alain. De tal reciprocidade entre dois irá surgir o sentimento que os ajudará a enfrentar os medos e as adversidades, a superar as tragédias físicas e emocionais. Um amor pleno e aguerrido, que não irá arrancar lágrimas fáceis e permanecerá vivo por um tempo indefinido na nossa memória.

Nem é preciso elogiar a atuação da sempre eficiente Marion Cotillard, que como tido, se não é a melhor atriz francesa da atualidade (ou talvez seja), é sem dúvidas a de maior prestígio, e o maior chamariz para a obra, acima até mesmo do diretor. Cotillard, que já tem a estatueta de melhor atriz da Academia enfeitando sua casa, justamente por um filme feito em sua terra (“Piaf”, 2008), seguiu se consolidando como o nome mais proeminente do cinema francês em Hollywood, atuando em grandes produções, e ao lado de personalidades consagradas, em filmes como “Nine”, “Inimigos Públicos”, “A Origem”, “Contágio”, “Meia Noite em Paris”, e no recente “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”. Isso tudo sem esquecer de suas origens atuando também em projetos como “Até a Eternidade”.

A química da dupla protagonista é ótima, tanto que os dois repetem a parceria, e fazem parte do elenco de “Blood Ties”, thriller americano dirigido pelo francês Guillaume Canet, programado para 2013.

Embora dramático e emotivo, “Ferrugem e Osso” nunca chega a marca do massacre de sentimentos. É uma história onde coisas ruins acontecem aos personagens, que como em toda trama de superação, precisam lidar e vencer seus problemas. Mesmo mais inclinado ao drama, a produção guarda diversas cenas cômicas, principalmente as que dizem respeito ao relacionamento inicialmente prático da dupla protagonista. Os holofotes aqui ficam para Schoenaerts (de “A Espiã” e do inédito e elogiado “Bullhead”, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro desse ano), que possui uma forte presença nas telas. É uma grande qualidade para um ator se tornar imprevisível em seu personagem, e o belga Schoenaerts desperta igualmente compaixão, sensibilidade, repulsa e certo terror. Nunca sabemos qual desvio seu personagem irá sofrer, e o ator incorpora essa ambiguidade de forma incrivelmente eficiente. O diretor Audiard (um nome para seguirmos de perto agora) consegue criar uma obra crua em seus sentimentos, aplicando em doses uma doçura florescente, cuja guinada final consegue satisfazer os adeptos de ambos desfechos, crus e realísticos, ou satisfatórios e agradáveis.



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